Homem versus justiça zarolha

Nunca aqui quis falar sobre o caso de justiça que envolve José Sócrates, por ser um assunto demasiado delicado. Delicado para o próprio, para a justiça e para a política nacional. Delicado porque as suspeitas são graves, porque é um ex-primeiro ministro (e polémico, amado por uns e odiado por outros) e porque as eleições que se avizinham podem de algum modo ser influenciadas por este episódio. Todavia, ao cabo de seis meses de falatório, e dados os recentes desenvolvimentos, não consigo mais guardar silêncio.

Tal como todos os portugueses, exceto os diretamente envolvidos no caso, não presumo saber a culpabilidade ou inocência de José Sócrates. Deixo isso com a justiça, que é para isso que existe. Aquilo que se vai sabendo através dos media parece ser pouco mais do que especulações. Porém, num caso como este, o que devia ser do conhecimento do público era tudo ou nada. As fugas de informação, de que não se conhecem os autores, os quais, como em todos os casos, permanecerão invariavelmente na sombra e impunes, são um constante desrespeito pelo segredo de justiça, que me parece que neste caso nunca chegou a existir. Isso sim, é que perturba o processo. Não a defesa pessoal que Sócrates tem empreendido, através dos poucos meios que tem ao seu alcance, em que luta num julgamento público, onde, para todos os efeitos, já está condenado. Muito por conta das (des)informações que o Ministério Público “desleixadamente” tem deixado escapar pelas frestas, lançando suspeitas acusatórias para o ar, que até agora não têm mostrado ser mais do que convicções não apoiadas por provas.

Estar preso há seis meses sem qualquer acusação deduzida é desumano e atenta contra os direitos e liberdades de qualquer cidadão num estado de direito. As razões apontadas pelo juiz de instrução Carlos Alexandre para manter a prisão preventiva soam a desculpas esfarrapadas. O perigo de fuga, reabilitado pelo Tribunal Central de Instrução Criminal nesta segunda reapreciação da medida de coação, mas que o próprio reconhece ser diminuto, já tinha sido refutado pelo Tribunal da Relação. Sócrates não é propriamente um cidadão anónimo, que passe despercebido num aeroporto. E se alguma dúvida existe em relação à sua determinação de enfrentar a justiça, recorde-se que decidiu apanhar o avião de volta para Portugal mesmo sabendo que aqui o esperava a prisão. Quanto ao argumento de perturbação da recolha e da conservação da prova, não abona em nada o Ministério Público (MP) pensar que, nesta altura, não estejam já recolhidas todas as provas necessárias. Assim sendo, torna-se em si um argumento fechado, pois vem reforçar a teoria de total falhanço nas diligências do MP: prenderam o homem para o poderem investigar à vontade, e para conseguirem acusá-lo têm de o manter preso. Esqueceram-se talvez que, por muito conveniente que seja esta medida, não está previsto que a prisão preventiva sirva para investigar uma pessoa. No caso BES/GES, por exemplo, que trouxe consequências muito piores para o país e em que os indícios são muito mais fortes e apoiados por provas documentais, não se vê ninguém preso. Acaso Ricardo Salgado oferece mais confiança ao MP relativamente ao perigo de fuga ou de perturbação das provas?

Não vou aqui alimentar nenhuma teoria da conspiração nem de “vinganças mesquinhas”. O que me interessa, no final, é saber se José Sócrates fez ou não o que se diz que fez. Se fez, deve ser punido, como qualquer outra pessoa. Se não fez, sairá de qualquer forma derrotado, pois antevê-se mais de um ano da sua existência aprisionado e com uma vida completamente queimada na praça pública.

Ou talvez não. Sócrates é daquelas pessoas que renasce perante a adversidade, e se as suspeitas não se provarem verdadeiras, acredito que ele possa sair reforçado, embora exausto e com os mesmos opositores de sempre. E, nesse caso, a julgar pela sua personalidade, tomará como missão infernizar aqueles que agora o atacam.

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