Cavaco, o assessor do Governo

Se alguma saudade existia da amistosa colaboração entre a Presidência da República e o Governo, na semana passada Cavaco Silva correspondeu, mais uma vez, às expectativas e deu mais um empurrãozinho ao Governo PSD/CDS. Um não, dois, e no mesmo dia. Se é que é possível haver espaço para saudade de algo que tem sido uma constante ao longo dos últimos quatro anos. Uma amizade bonita de se ver entre as duas instituições, com muitos abracinhos e pancadinhas nas costas e, já agora, digo bem de ti e levo-te ao colo e tu também não me pisas os calos.

Primeiro, foi a resposta às declarações de Juncker alegando que Portugal se opôs a que um alívio da dívida grega fosse discutido antes das eleições legislativas portuguesas. É certo que o Presidente da República (PR) tem responsabilidades na política externa, mas não me parece que lhe caiba o dever, nem o direito, de dar a cara por posições que só ao Governo dizem respeito. Sobretudo quando se trata de assuntos que mexem com a política interna e que podem de alguma forma trazer consequências para resultados eleitorais.

Mais tarde, no mesmo dia, numa longa comunicação ao país em que marcou a data das eleições legislativas, Cavaco Silva não se cansou de falar da necessidade de um governo estável e apresentou uma maioria absoluta como o único cenário aceitável para a próxima legislatura. Isto para além de aludir concretamente a um governo de coligação, e todos sabem, e Cavaco Silva também sabe, que essa referência não é inocente e não se reporta com certeza à CDU.

Impõe-se sempre ao PR, nesta altura, o apelo à estabilidade e à intervenção responsável dos partidos no processo eleitoral, e ainda bem que o fez. Mas Cavaco Silva foi mais além, mais além do que devia, e impôs aos portugueses um determinado resultado eleitoral, aquele que é da sua preferência, sobrepondo-se assim à vontade do povo. Cavaco Silva deu um pontapé nas raízes da democracia pela qual os nossos pais e avós lutaram, acrescentando algo novo à nossa experiência de 41 anos.

E se os portugueses decidirem não dar maioria absoluta a nenhum partido? Será que vamos enfrentar a ira do PR? Os céus vão tornar-se negros e os santos vão chorar lágrimas de sangue? Vão surgir papões durante a noite para assombrar criancinhas? Cavaco Silva terá de fazer aquilo que compete a qualquer PR: respeitar e fazer cumprir a decisão dos eleitores. E aqui, o PR tem os pés e mãos atados: mesmo que o resultado das eleições não seja do seu agrado, não pode amuar e convocar novas eleições, uma vez que se encontrará no período de seis meses de final de mandato em que está inibido de o fazer. Melhor seria ter usado de maior prudência no seu discurso, para mais tarde não ser obrigado a engolir sapos à vista de todos.

Ao longo destas quatro décadas de democracia, houve Presidentes da República e Governos com melhores e piores relações. Houve Presidentes da República e Governos do mesmo partido e de partidos diferentes. Mas todos souberam, de um modo geral, respeitar as fronteiras no que diz respeito às competências de cada um. Até à dupla Cavaco Silva/Governo de Passos Coelho, onde todos os limites em matéria de isenção foram ultrapassados, de forma escandalosa. E essa vai ser uma das muitas manchas na folha de serviço de Cavaco Silva, e na história da democracia portuguesa.

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