A tragédia bateu à porta dos que contam

A tragédia dos migrantes africanos e do Médio Oriente, vista mais como uma ameaça, chegou à Europa dos grandes. À Europa que conta. E como deixou de ser um problema só dos países do sul, nomeadamente Itália e Grécia, passou a ser considerada um grande problema, e por isso combate-se com empenho e exige-se a intervenção de toda a Europa.

O Reino Unido e a França, tal como muitos outros europeus, empurraram com a barriga o pedido de ajuda de Itália quando esta estava assoberbada com um mar de mortos e refugiados à sua porta, a quem já tinha pouco para oferecer. Por ironia do destino, ou por castigo divino – para quem acredita nestas coisas –, o drama fustiga agora quem recusou enfrentá-lo.

A construção de vedações múltiplas, o arame farpado, os cães e o gás lacrimogéneo marcam de vergonha a paisagem de Calais e do Canal da Mancha e tornam os governos de França e do Reino Unido comparáveis aos de alguns países de terceiro mundo, que usam da força e do horror para travar as pessoas e tratá-las como mercadoria indesejável. Todavia, não serão suficientes para resolver o problema da migração, e muito menos a guerra, a fome e a miséria que estão na sua origem. Esta é uma questão política, que se resolve respeitando os povos destes países, as suas crenças e a sua soberania, que não deve estar sujeita àquilo que o Ocidente pensa ser o melhor para eles. E isso exige um compromisso de todo o mundo, sobretudo dos Estados Unidos e da Europa, o que inclui a França e o Reino Unido.

Nestes dias, David Cameron tem dado a conhecer ao mundo uma faceta de xenofobia e de desprezo pelos direitos humanos que decerto surpreendeu muita gente. E François Hollande, mais uma vez, encolhe-se perante outro gigante europeu, permitindo, e até agradecendo, que o seu território seja invadido pelo arame farpado britânico. Mas as pessoas, que são refugiados da repressão e não migrantes, continuam a morrer e a amontoar-se nas ruas e no túnel, para lhes lembrar que existem e que as decisões e indecisões dos governantes deixam marcas nas vidas de quem apenas procura uma oportunidade para viver. E como em todas as histórias de imigração, em todos os séculos, essas marcas darão origem mais tarde a uma geração revoltada, que se tornará dissidente dentro dos países de acolhimento.

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