Deixar amadurecer a esquerda

O mundo dá reviravoltas tão extraordinárias que por vezes tropeça sobre si próprio, e abana os alicerces de tal forma, que mesmo os mais prevenidos deixam de saber de onde vêm e para onde vão.

Assim aconteceu nestas Legislativas de 2015. Há um ano atrás, a vitória do PS parecia mais do que certa. Porém, o momento único que Portugal atravessa em termos de conjuntura política e económica, aliado às inabilidades do PS de António Costa e aos méritos da coligação PSD/CDS (remeto para o texto deste blogue de 30 de Agosto de 2015), viraram o jogo e, nas últimas semanas da campanha eleitoral, o que se discutia era se o PàF obteria ou não maioria absoluta. Afinal, a vitória da coligação acabou por não ser assim tão expressiva. Mas a derrota do PS também não o foi. Multiplicaram-se as leituras dos resultados do sufrágio por parte de dirigentes dos partidos e comentadores, ora dando ênfase à vontade popular de prosseguir as políticas até então adotadas pela coligação de direita (logo aproveitando o inefável Schäuble, e outras personalidades da União Europeia (EU), para realçar que os portugueses gostam de austeridade), ora capitalizando uma maioria (absoluta) da esquerda. Já para não falar das contas mais rebuscadas, como a da maioria que disse não querer o PàF ou a da maioria que também não queria o PS. Tais resultados conduziram a uma das mais confusas formações de governo da história da democracia portuguesa. E o responsável por tamanha incerteza é Cavaco Silva, ao ter condicionado o desfecho destas Legislativas a uma maioria absoluta, que o povo não quis.

Julgo ser difícil presumir saber o que os portugueses desejam quando votam neste e não noutro partido, uma vez que o voto de cada um é influenciado por diversos fatores que não se esgotam na política, mas que têm a ver com uma determinada vivência pessoal em determinadas circunstâncias. A leitura deve ser o mais objetiva possível e desprovida de quaisquer atalhos e segundas ou terceiras intenções que lhe queiram dar. E, para mim, é claro: goste-se ou não, os portugueses escolheram continuar com as políticas do PSD/CDS, mas obrigando-os a temperar com as medidas dos partidos do centro e da esquerda.

Não fosse a ingerência de Cavaco na vontade soberana e não existiria este alvoroço de negociações, cartas e reuniões, que alimentam diariamente as manchetes. Não fosse isso e não haveria dúvidas: o governo seria formado pelo PSD e CDS. Minoritário, sim, mas isso traduz a legítima vontade do povo de não entregar o poder sem quaisquer reservas. E esse é um resultado importante em democracia. Mas esta sucessão de acontecimentos abriu espaço para que António Costa apanhasse o comboio da corrida ao governo, passando a conduzi-lo, e permitindo a entrada do BE e PCP, que estavam há demasiado tempo no apeadeiro.

Não há dúvida de que António Costa, perdendo, parece que ganhou, tal como dizem os Abba em “Waterloo”. O que se discute desde há dezasseis dias é com quem o PS negoceia e o que é que o PS propõe. Nem uma palavra acerca das diligências de Passos Coelho para formar governo (que parecem ser poucas ou nenhumas). Aqui, inverteram-se os papéis: Passos e Portas, inequívocos vencedores, encostaram-se ao número de votos e à deliberada proteção do Presidente da República e deixaram-se ultrapassar por António Costa. Inabilidade dos primeiros e mérito do segundo. Diria mais, é de facto um golpe de génio de Costa, seja qual for o desfecho.

Todavia, a reviravolta de António Costa não me parece ser uma forma de disfarçar a sua derrota. Nem tão pouco simples oportunismo, aproveitando a ausência de uma maioria absoluta. Costa disse ao que vinha desde o início, rejeitando o arco da governação e abrindo portas à esquerda (como se pode ler na útil retrospetiva de Daniel Oliveira no Expresso Diário de ontem, 19 de Outubro). E o debate das coligações pré e pós-eleitorais não tem aqui razão de ser. Já fui de opinião que as coligações pós-eleitorais não deviam ser permitidas, pois isso seria mudar as regras do jogo a posteriori. Não deixa de ser verdade. Mas hoje reconheço que, por vezes, as coligações pós-eleitorais são necessárias para assegurar a governabilidade de um país. E convém não esquecer que a coligação PSD/CDS que serviu de base ao Governo agora cessante também foi formada após as eleições, caso contrário teríamos tido um Governo minoritário, que dificilmente teria conseguido governar, dada a conjuntura.

Um governo dos partidos de esquerda, ou do PS com apoio parlamentar do BE e PCP, nas circunstâncias atuais, não será tradição em Portugal, mas também não é ilegítimo, inconstitucional e muito menos um golpe de Estado. Aliás, não deixa de ser curioso que, num país onde a esquerda tem tanta representatividade, os governos caibam sempre à direita ou ao centro. E, nestas eleições, há que admiti-lo, a única maioria absoluta que se vê é a da esquerda. Está mais do que na hora de PCP e BE passarem de partidos de protesto a partidos com responsabilidade na governação. Se o CDS pode esquecer divergências e integrar governos, até com o PS, porque não pode a esquerda unir-se em nome do interesse nacional? Há muito que a democracia portuguesa reclama um momento assim.

Contudo, acho que ainda não chegou esse momento. Este será um importante primeiro passo, mas que necessita de amadurecer. Têm razão os que dizem que não é em dias que se apagam divergências ideológicas e ataques mútuos de décadas. Como dizia Freitas do Amaral ontem na RTP3, tal aproximação faz-se em meses, se não mesmo anos. Conhecendo a história dos três partidos, um Governo por eles integrado deixaria o PS condicionado e estaria certamente votado à implosão a prazo. Será mais sensato que PS, BE e PCP delineiem estratégias comuns e ultrapassem pontos de rutura em matéria de Europa, moeda única, NATO e políticas sociais e económicas, para que se constituam como uma união de forças contra a austeridade e a subserviência face à União Europeia e aos Mercados. Isso, sim, seria uma importante viragem na democracia portuguesa e o início da alternativa à alternância.

Goste-se ou não, a força mais votada foi a coligação PSD/CDS, e é essa que deve governar. Com a oposição unida e assertiva do PS, PCP e BE, puxando as políticas para a esquerda. Mas simultaneamente uma oposição responsável, com sentido de Estado, que não derrube o Governo na primeira oportunidade, para assacar o poder. Porque a situação do país não está para jogos e amuos políticos.

Infelizmente, acho que tal não passará de um desejo. Prevejo que Passos Coelho seja de facto chamado a formar governo, juntamente com o CDS. E talvez até resista à aprovação do programa e do Orçamento de Estado para 2016. Mas não será um governo para quatro anos. O problema é que, ano após ano, Portugal anda a marcar passo em reviravoltas que não nos levam para a frente. 

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