As fraquezas da esquerda

O entendimento entre o Partido Socialista e os restantes partidos de esquerda, mesmo que não se venha a revelar duradouro, é histórico só pelo facto de ter nascido. E é esse ineditismo que o reveste de uma aura de desconfiança, própria do que não se conhece, o que é compreensível e inevitável. Ao contrário de muitos, incluindo a Europa, os empresários, os Mercados, os media, não vejo na esquerda o maior de todos os males nem o fim do mundo, já o disse várias vezes. Tão-pouco o vejo na direita ou no centro. A diabolização dos braços políticos é própria de dois tipos de pessoas: dos que têm a aspiração de manipular a sociedade em seu próprio benefício e dos que vivem alheados e deixam que os primeiros pensem por si. Mas há que admitir que este acordo da esquerda tem várias fragilidades que não são, desde logo, um bom começo, e que escancaram mais a porta à crítica e ao ceticismo. Refiro-me a fragilidades no plano político, deixando a parte técnica para quem realmente entende do assunto. Deixo de fora divergências ideológicas, como o Tratado Orçamental, o euro, a NATO, porque considero que BE, PCP e PEV, embora não abandonando as suas convicções estruturais, acederam a concentrar-se nos pontos de convergência que permitam sustentar um governo de esquerda.

1.       Três acordos bilaterais. Esperava-se um acordo único assinado pelos quatro partidos. Em vez disso, existem três posições conjuntas, firmados entre o PS e cada um dos outros partidos da esquerda. Isto denota desunião e dificuldades de entendimento. António Costa e a sua equipa tiveram de negociar separadamente com Bloco de Esquerda, PCP e PEV as medidas de que cada um não prescindia. Para quem terá de passar os próximos quatro anos – ou assim se presume – do mesmo lado da barricada, colocando-se de acordo em matérias específicas de forma a manter viável o governo minoritário, torna-se difícil aceitar que não consigam elaborar um documento comum, coeso, que contenha as linhas gerais de tal acordo.

2.       Duração do acordo. Nenhum dos documentos se refere ao tempo de vigência dos acordos. E António Costa já admitiu, na reunião da Comissão Política Nacional do PS a 8 de Novembro, que este entendimento terá a duração possível. Os orçamentos e as várias questões da governação serão negociadas a seu tempo, sem qualquer garantia de que serão aprovadas. Neste ponto, a unanimidade pauta-se pela recusa de comunistas, bloquistas e Verdes em passar um cheque em branco ao governo socialista. Compreende-se que nenhum deles queira abdicar dos seus princípios e da sua identidade, pois não se trata de uma fusão dos partidos. Os socialistas terão de andar com pezinhos de lã, a fim de manterem as instáveis costuras alinhavadas. É como terem uma espada sobre as suas cabeças, sabendo que qualquer passo em falso, ou seja, qualquer medida que se afaste da moldura ideológica de qualquer um dos outros três partidos, pode levar à rutura e à queda do governo. E tal não será muito difícil de acontecer, tendo em conta o ambicioso programa económico, que parece aumentar a despesa e reduzir a receita, aliado aos instáveis humores dos Mercados e da economia mundial, que nenhum governo pode prever ou controlar.

3.       Moções de censura. Nas posições conjuntas está prevista a análise de eventuais moções de censura ao governo em reuniões bilaterais. Mas nada diz quanto à possibilidade de os próprios partidos poderem apresentá-las. No entanto, nos três textos lê-se claramente “rejeitarão qualquer solução que proponha um governo PSD/CDS como derrotarão qualquer iniciativa que vise impedir a solução governativa alternativa”, o que teoricamente esgota essa possibilidade. Como é óbvio, nenhuma união é indissolúvel, mesmo que um pedaço de papel o determine. O apoio manter-se-á enquanto os seus atores assim quiserem. E qualquer um deles poderá pressionar o botão de implosão do governo se as relações interpartidárias azedarem.

4.       Governo só com PS. PCP, Bloco e Verdes não aceitaram fazer parte do governo, o que fragiliza a sua posição em termos de compromisso com a solução governativa que agora apoiam. Isto permite-lhes afastarem-se perante o seu eleitorado da responsabilidade de algumas medidas menos populares que possam vir a ser tomadas e até facilmente saltar fora do acordo, se a dada altura assim o entenderem. É verdade que, perante a Europa e os Mercados, é mais aceitável um governo sem a presença de forças anti-europeístas e anti-capitalistas. Mas perante os portugueses, e é a esses que o governo e a Assembleia da República respondem em primeiro lugar, um governo com os quatro partidos seria um sinal de maior coesão e maior empenho de todos na governação e numa legislatura para quatro anos.

5.    Quatro moções de rejeição. É difícil compreender que os quatro partidos não tenham conseguido apresentar uma moção de rejeição única. Isso passaria uma mensagem de união e consistência. Em vez disso, dá azo a que se questione que tipo de entendimento para governo conseguirão alcançar, quando não foram capazes de se unir para elaborar algo mais simples.

A História não está do lado da esquerda no que toca a acreditar num compromisso sólido dos quatro partidos. E as três posições conjuntas estão longe de assegurar um apoio incondicional a um eventual governo liderado por António Costa. Mas há muito que os militantes pediam que se entendessem. Um acordo de incidência parlamentar não é uma coligação, mas é um instrumento perfeitamente legítimo e previsto na Constituição, que pressupõe que os partidos envolvidos vão negociando em cada momento à medida do necessário. Além disso, todos temos memória de como as coligações, por mais firmadas que estejam, podem partir, de forma mais ou menos irrevogável. Agora que a conjuntura se alinhou para abrir a porta à esquerda, e que os respetivos líderes souberam ver essa abertura, não me parece que a união vá quebrar devido a infantilidades e vis intransigências. Não digo que um governo do Partido Socialista nestas condições dure os quatro anos. Mas também não me parece que caia ao fim de poucos meses. António Costa já deu provas de ser um bom negociador. Catarina Martins soube credibilizar-se e lançar o Bloco para onde este nunca sonhou estar. E Jerónimo de Sousa sabe, e faz saber a Heloísa Apolónia, que é o PCP que perde se ficar apeado do comboio da esquerda. 

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