Pedro e o lobo (em pele de cordeiro)

Pedro Passos Coelho sente-se despeitado, ofendido, melindrado e até maltratado. Tem razões para isso. Afinal, não é todos os dias que um primeiro-ministro eleito é empurrado para fora, protagonizando uma crónica de morte anunciada inédita em Portugal. Como tal, amuou, o que é compreensível. Devemos conceder-lhe esse direito, bem como o de não aprovar as propostas do Partido Socialista, sejam elas quais forem, e o de recusar-se a salvar o governo e o país se o castelo de cartas desmoronar. Passos foi posto de parte neste jogo. Mas não o vemos de cara fechada a brincar sozinho num canto. Perdido por cem, perdido por mil, joga uma última cartada, que tem tanto de absurda como de perigosa: propõe alterar a Constituição para possibilitar eleições antecipadas, e já.

António Costa foi muito criticado, desde a esquerda à direita, por derrubar um governo democraticamente eleito e querer substituí-lo por um executivo socialista. Concorde-se ou não, é legal, é legitimado por uma maioria parlamentar de esquerda e está previsto na Constituição. Muito diferente é querer mudar as regras do jogo de forma extemporânea e apressadamente, apenas porque estas não são favoráveis a uma minoria beliscada por uma curiosa conjugação de circunstâncias. A ideia de alterar a Constituição desta forma só me pode fazer lembrar uma coisa: os ditadorzitos de países de terceiro mundo, no século passado e no presente, que alteram leis de forma a tornarem-se eles próprios presidentes vitalícios e omnipotentes. Não precisamos de recuar muito: José Eduardo dos Santos, presidente de Angola há 36 anos (só ultrapassado em antiguidade por Obiang da Guiné Equatorial, que lhe leva cerca de um mês de vantagem), prepara-se para fazer exatamente isso. E todos sabemos o exemplo de democracia que são estes dois regimes. Disso já nós tivemos em Portugal.

Passos Coelho, jovem e bem-parecido, com ar grave e sério e voz de barítono, esconde uma personalidade impetuosa, de um liberalismo extremo e com um ou outro requinte de totalitarismo que raramente deixa escapar. Emergiu da JSD como um jovem promissor. A sua ascensão a líder do PSD foi vista como um ponto de viragem e as suas ideias neoliberais foram muito aplaudidas no seio do partido. Mas o passar dos anos tem revelado uma personalidade perigosa para os destinos do país. Em quatro anos, Passos conseguiu operar em Portugal feitos como poucos ousaram, não só em matéria de economia, mas sobretudo a nível social. Escavou um fosso intergeracional, fazendo do sistema contributivo uma barricada que opõe novos contra velhos. Fez recuar a imigração para níveis só vistos na década de 60, com a consequente fuga de cérebros e perda de investimento em recursos humanos, já para não falar na separação de famílias. Enganou os eleitores, retendo dinheiro de reembolso de IVA e fazendo crer que iria devolver a sobretaxa do IRS, em percentagens que foram decrescendo e que se materializaram em nada após as eleições – um logro mesquinho e escandaloso que manipulou os rendimentos das pessoas e das empresas para ganhar votos, o que é grave. E radicalizou o sistema político português de tal forma que logrou a última coisa que pretendia: unir a esquerda – algo que se julgava impossível desde há 40 anos – e permitir que esta o derrubasse.

Tais feitos já deram um lugar na História a Passos Coelho. A dimensão desse lugar depende da capacidade de os portugueses reconhecerem o engodo do lobo em pele de cordeiro e de o travarem antes que seja tarde demais.

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