O doce-amargo da extrema-direita

O fantasma do radicalismo nacionalista de extrema-direita começa de novo a assomar a cada esquina da Europa. Depois da Hungria e da Polónia, foi a velha França a dar indícios de uma perigosa viragem. Isto acontece porque a Europa chegou a uma encruzilhada. Contudo, quem comanda o cortejo avança com soberba, sem perceber o caminho que leva e que direções seguir para evitar a queda no abismo.

O despertar da extrema-direita não surpreende. Há sempre uma conjugação de circunstâncias na origem de todas as viragens políticas e sociais, e este caso não é exceção: a crise económica mundial que fustiga incansavelmente os países europeus; as hordas de refugiados que se amontoam às portas da Europa; e o inimigo terrorista que se esconde entre nós e ameaça o nosso estilo de vida e liberdades, como tão cruelmente nos foi dado a perceber nos recentes atentados de Paris. Ao longo desta perversa narrativa, os exemplos de que a ascensão da extrema-direita estava iminente foram desfilando diante dos nossos olhos: a austeridade cega, que alargou o fosso entre ricos e pobres e dividiu os cidadãos em europeus de primeira e europeus de segunda; os muros de Viktor Orbán, que se foram multiplicando posteriormente por toda a Europa; a guerra contra o terrorismo, materializada por estados de emergência infindáveis, encerramento de mesquitas, bombardeamentos à toa sobre a Síria e desvios de dinheiros públicos desprezando os sacrifícios internos e de outros povos europeus. Apesar desta sucessão de exemplos, foi-se insistindo numa política de desigualdade, de discriminação, de repressão, de limitação da liberdade e de ultranacionalismo. Muitas vezes até por parte de dirigentes tidos como moderados, como François Hollande.

A Frente Nacional (FN) do clã Le Pen, ao contrário do Syriza grego ou do Podemos e Ciudadanos espanhóis, é um partido experiente, que ocupa consistentemente o seu lugar no eleitorado francês desde há três décadas (esta comparação versa apenas o plano temporal e de forma alguma a área política dos partidos). Tem vindo a subir paulatinamente desde 2007, como mostram os resultados eleitorais dos últimos anos, acompanhando a trajetória de mudança política e social. O clã Le Pen soube capitalizar esta conjuntura, encontrando o último balão de oxigénio que precisava nos atentados de Paris de 13 de Novembro. Várias personalidades alertaram nessa altura para o risco desta ascensão. Mas o verdadeiro susto, que curiosamente parece ter apanhado desprevenidos os franceses e o resto dos europeus, ocorreu na primeira volta das eleições regionais de 6 de Dezembro, quando a FN saiu como o partido mais votado. Felizmente, os socialistas, apesar de muito criticados, mesmo no seio do próprio partido, souberam entender a urgência de derrotar a extrema-direita e despojar-se de orgulhos e divergências. E para isso vale tudo, incluindo apelar ao voto dos seus eleitores nos partidos de direita. Porque há alturas em que se torna imperioso pôr de lado o que nos separa e reforçar o que nos une, para que prevaleça a liberdade e a igualdade. É isto que significa fraternidade. Pena é que a união de partidos de direita não seja capaz de tal altruísmo, em nome do superior interesse nacional.

A FN acabou por não ganhar nenhuma das regiões na segunda volta. Mas conseguiu o voto de cerca de 6,5 milhões de eleitores franceses, passar a ser a terceira força política do país. O que é preocupante. Mas Marine Le Pen não quererá ficar por aí. O que é extremamente preocupante. O seu objetivo será chegar ao Eliseu em 2017, e dará com certeza muita luta, a julgar por estas regionais e pelo que se avizinha, com o continuar da crise económica, o engrossar das fileiras de refugiados e a ameaça cada vez mais contundente do terrorismo. Cabe aos partidos moderados, da direita à esquerda, e sobretudo aos cidadãos, perceber o perigo iminente do fascismo e combatê-lo, pondo de parte orgulhos e ambições. O que não será fácil, pois cada um tem o seu umbigo, o que ficou bem espelhado na reação de Nicolas Sarkozy ao radicalizar o seu discurso para a direita com o intuito de capitalizar uma melhor posição para as presidenciais de 2017. Com políticos assim, a extrema-direita tem à sua frente uma autoestrada vazia e sem portagens.

A Europa parece ter esquecido o seu sofrimento às mãos do totalitarismo. Já não se tem presente que o nazismo de Hitler exaltava a pureza da raça ariana e expulsava e exterminava outros povos considerados inferiores. Já não é recordado que o fascismo reprime as liberdades individuais e mata o Estado social. Já não é ensinada a luta de décadas travada contra os ditadores, que tanto toca a nós portugueses. Quando se perde a memória e se vai abrindo mão de liberdades e conquistas, mais tarde ou mais cedo sucumbe-se à escuridão e à tirania. Já devíamos saber isso. Ainda há quem se lembre e são esses que nos tentam acordar deste sono profundo. Ainda vamos a tempo. Mas se não acordarmos já e se nos entregarmos ao doce-amargo facilitismo de nos deixarmos ir, serão precisas décadas, outra vez, para reconquistar a liberdade. E outras tantas para sarar as feridas.

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