Qui est vraiment Charlie?

Passou esta semana um ano desde o atentado terrorista contra a redação do jornal satírico Charlie Hebdo, em Paris, que tirou a vida a doze pessoas. Toda a comunidade internacional condenou este massacre, e bem. Qualquer ato de terrorismo é cobarde porque é um inimigo sem rosto, que defende causas, sejam elas quais forem, pelas quais não tem coragem de dar a cara. Muito se criticou na altura, e ainda hoje, o ataque à liberdade de expressão. Mas alguém parou para pensar no ataque às crenças religiosas individuais que este e outros jornais fazem repetidamente?

As religiões são diferentes entre si, mas todas assentam num ponto comum: a crença numa entidade ou entidades divinas, de tal forma transcendentes que se tornam abstratas e indefinidas. E isso não é racional, explicável ou objetivável. Tal como o amor também não é. Ou se ama ou não se ama. Ou se acredita ou não se acredita. Mas não se ridiculariza nem se goza. Nada mais resta do que respeitar. Por mais livros pretensamente sagrados que existam, ninguém até hoje conseguiu provar que esta ou aquela religião seja a verdadeira ou a correta – se é que alguma o é.

Contudo, após séculos de existência e de convivência, constantemente perturbados por guerras ditas religiosas, os seguidores de cada doutrina parecem não ter ainda compreendido esta verdadeira essência da religião. Por isso se sucedem os atos de violência, em que se tenta submeter os outros a esta ou aquela crença. Mas isso não é um defeito de uma determinada religião, até porque em todas isso acontece – na católica com as Cruzadas, na islâmica com a jihad. O problema está no punhado de pessoas interesseiras e sem escrúpulos, que existem e sempre existirão em todos os credos, que se servem da paixão irracional da crença divina para mobilizar os outros, e desta forma alcançar ganhos que nada têm a ver com religião e têm tudo a ver com dinheiro e poder.

Ora, satirizar um deus ou um profeta, colocando-lhe uma arma nas mãos e transformando-o num assassino sangrento, é não compreender a origem desta perversão. É desrespeitar aqueles que simplesmente acreditam em deuses, santos, apóstolos ou outras figuras sagradas, sem matar em nome delas, e que são a maioria. E isso, meus amigos, não é liberdade de expressão. É jornalismo de caserna. É cegueira de artista endeusado pelo seu talento.

Junto a minha voz aos que condenaram o massacre na redação do Charlie Hebdo, da mesma forma que condeno os atentados de Paris a 13 de Novembro, do metro de Londres a 7 de Julho de 2005, da estação de Atocha em Madrid a 11 de Março de 2004 e do World Trade Center em Nova Iorque a 11 de Setembro de 2001. Tal como condeno todos os outros, incluindo os que têm lugar em países árabes. Porque são vidas que se perdem. Porque não é esse o caminho para resolver as divergências, sejam elas quais forem. E talvez tenha sido essa comoção que levou muitas pessoas a comprar o jornal, que tinha uma circulação habitual de 60 mil exemplares e que chegou a aumentar a tiragem para os sete milhões. Mas seriam todas essas pessoas verdadeiramente Charlie? Eu sei que não sou.


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