As obras completas do XXI Governo em 74 dias

O Governo liderado por António Costa tomou posse há exatamente 2 meses e 12 dias. Em tão curto espaço de tempo, o Executivo socialista, juntamente com os seus parceiros da maioria parlamentar, têm-se desdobrado num ritmo de trabalho alucinante, como que acometidos por uma febre executiva, que os faz não deixar para amanhã o que podem fazer hoje. Somam-se reversões e revogações, meias reduções, mas também inovações. Sem esquecer complexas negociações. Sem fundamentalismos, há que reconhecer os aspetos positivos e negativos destas políticas. Eis as obras completas do XXI Governo em 74 dias.

Educação
Foi a primeira área a ser mexida, e uma das mais polémicas. Parece ter-se tratado de um caso grave de “anti-Cratite” aguda. Não tenho de todo conhecimentos para advogar se é melhor fazer exames no 4º, 6º e 9º anos ou provas de aferição no 2º, 5º e 8º anos. Até faz algum sentido ocorrerem a meio do ciclo de estudos, dando tempo para corrigir eventuais fragilidades. Mas alterar as regras no decurso do ano letivo não é ajuizado e prejudica alunos e professores. Também não consigo opinar sobre se os exames impõem excessiva rigidez no sistema educativo, impedindo a criatividade individual e a diversidade de interesses. O que sei é que a exigência e o rigor devem pautar todo o ensino, em detrimento do laxismo e facilitismo que se vê em muitas camadas de alunos. É precisamente para responder com conhecimento de causa a estas questões que existe um Conselho Nacional de Educação e grupos de peritos, que estudam estas matérias. Fazer reformas avulsas sem um fio condutor, sem ouvir estes agentes, e à pressa, é um erro, que o país paga caro com deficiências na formação dos seus cidadãos.
Pelo lado dos professores, a revogação da Prova de Avaliação de Conhecimentos e Capacidades (PACC) não concorre para a qualidade da docência. A avaliação de professores, como de outros profissionais, bem como a formação pedagógica, são uma realidade internacional, com bons resultados no ensino. Se o problema é o modelo de avaliação, então que seja corrigido e reformulado. Mas ficar sem avaliação dos professores é um retrocesso do sistema educativo.

Privatizações e concessões
É intenção do Executivo socialista não deixar de pé nenhuma das mais mediáticas privatizações e concessões efetuadas no último ano do Governo PSD/CDS, nomeadamente a TAP e transportes públicos de Lisboa e Porto. Reverter a privatização da primeira é um dos pontos de honra do programa socialista, corroborado por PCP e Bloco, por ser uma empresa de bandeira, que já deu lucros (antes da ruinosa e suspeita aquisição da brasileira VARIG), e que foi vendida por poucochinho e às escuras por um governo de gestão. Parece é bom demais para ser verdade que não haja mesmo lugar a qualquer indemnização, como garante o Ministro do Ambiente, João Pedro Matos Fernandes.

Banif
Mais um banco resolvido, e à custa dos contribuintes portugueses. Outro caso em que a venda foi por muito poucochinho, sobretudo tendo em conta o dinheiro que o Estado lá enterrou. Ainda há muito por explicar acerca da solução encontrada para o Banif, sobretudo no que diz respeito ao papel da Comissão Europeia, que parece ter metido um dedo grosso (ou a mão, ou mesmo o braço inteiro) neste dossiê. Apesar de todas as dúvidas e da existência ou não de alternativas, julgo que deixar falir o banco ou adiar a solução para 2016 (em que entraram em vigor novas regras de resolução bancária) seria ainda mais oneroso para os contribuintes: ao Estado, que detinha 60% do capital, caberia a maior parcela da dívida, para além de ter de garantir os depósitos até 100 mil euros. A conclusão clara, clarinha, em todo este processo é que do céu choveu ouro direitinho para o colo do Santander, mas quem apanhou uma monumental molha foi o povo português.

Salários, pensões, subsídios, sobretaxa e 35 horas
A redução da sobretaxa e contribuição extraordinária de solidariedade, a reposição de salários da função pública, rendimento social de inserção e complemento solidário para idosos e a atualização das pensões mínimas e do abono de família são medidas há muito anunciadas por António Costa e que se inscrevem no virar da página da austeridade. Sem esquecer o aumento do salário mínimo, cujo montante sempre foi uma vergonha nacional. São medidas que procuram repor justiça e igualdade social. Já o regresso da função pública às 35 horas semanais de trabalho agrava a desigualdade entre trabalhadores do setor público e privado. Não partilho o preconceito amplamente difundido de que os funcionários públicos fazem pouco – haverá neste setor pessoas mais e menos esforçadas e competentes, como em todas as áreas em todo o mundo. Acho até que em algumas áreas, como na saúde, os salários estão manifestamente aquém do volume de trabalho e da responsabilidade inerentes. Mas é incompreensível que um trabalhador do setor privado tenha de cumprir 40 horas (quando não mais) e financiar a redução de horário dos trabalhadores do Estado. A intransigência demonstrada pelos sindicatos da função pública, que exigem a entrada imediata em vigor da alteração – inclusive colocando-se acima da lei, que prevê um prazo de regulamentação de 90 dias – quando o país é forçado a reinventar-se para equilibrar as contas públicas é, no mínimo, ofensiva para com os seus concidadãos.

Redução do IVA da restauração para 13%
Uma medida há muito defendida pelos partidos da esquerda, ainda durante os Governos PSD/CDS. Também já a defendi. Mas mais recentemente, analisando os prós e os contras, cheguei à conclusão de que não faz sentido o setor da restauração e hotelaria usufruir de um benefício que outros setores não têm. O serviço que presta e o seu peso na economia e sociedade não são mais essenciais ou meritórios do que todos os outros, pelo que a taxa de IVA deveria ser igual. Ainda mais injusta, desigual e diria mesmo trapalhona é a meia-medida de manter apenas o IVA das bebidas em 23%.
Discutir o valor da taxa máxima do IVA já é outra conversa. Sempre o considerei demasiado elevado, prejudicial para os negócios externos do país e para o investimento proveniente do exterior. Por isso fui contra o aumento de 21 para 23% decretado pelo Governo de José Sócrates. Mas aceito que, na conjuntura atual, com o Estado a esmifrar-se para encontrar fontes de receita (e o IVA gera um montante considerável), não seja possível reduzir este imposto. Um dia mais tarde, quem sabe?

Volta Nacional Simplex
A anunciada reforma administrativa e legislativa, conhecida como Simplex, será uma das imagens de marca do Governo de António Costa, tal como foi de Sócrates. Uma importantíssima reformulação, de que o país necessita urgentemente, e cujos avanços anteriores foram desprezados por Passos Coelho. Alicerçar esta reforma numa auscultação por todo o país das principais necessidades dos cidadãos e das empresas é, sem dúvida, uma iniciativa inovadora, que aproxima o “sistema” das pessoas, e que espero venha a ser replicada doravante em muitas outras áreas.

Saúde: novo Portal e contratação de médicos reformados
O Ministro da Saúde é um conhecido defensor do Serviço Nacional da Saúde (SNS). O novo Portal da Saúde, além de aproximar o SNS dos cidadãos, disponibilizando funcionalidades úteis como legislação e informação sobre doenças e medicamentos, é um instrumento que torna mais transparente a prestação de cuidados de saúde pelo setor público.
Outra medida que está a ser trabalhada é o regresso de médicos reformados ao ativo mediante uma remuneração mais atrativa. Poderá ser discutível a justiça desta iniciativa, se tivermos em conta que a outros profissionais não é permitido acumular vários vencimentos (recorde-se o queixume de Cavaco Silva em 2012 acerca da sua insuficiência de meios…). Porém, compreende-se que poucos médicos reformados aceitariam voltar a trabalhar por apenas mais um terço do salário, como tem sido até aqui, e o facto de apenas 300 médicos reformados terem regressado ao trabalho atesta a ineficácia da medida tal como adotada pela ex-Ministra Ana Jorge. Mais justo e eficaz será talvez dificultar e penalizar ainda mais as reformas antecipadas.

Orçamento de Estado
O esboço e o próprio Orçamento de Estado (OE) para 2016 têm protagonizado uma novela nas últimas semanas, cujo enredo encerra uma intriga que eu arriscaria a classificar de mais complexa do que a de uma novela da TVI. Creio que temos assistido a uma estratégia de propaganda por parte dos media, agentes económicos e da oposição parlamentar, baseada em declarações descontextualizadas e fugas de informação, incluindo por parte da Comissão Europeia (CE). No fundo, tudo isto é mais encenação e carnaval (aproveitando a atual quadra festiva) do que outra coisa. PSD e CDS, já se sabe, empregam todos os esforços em desacreditar um orçamento que vem contradizer a já gasta falta de alternativa. Na verdade, ninguém no seu perfeito juízo estava convencido de que “virar a página da austeridade” significaria acabar com ela. O que os portugueses sempre reclamaram do Governo de Passos e Portas foi uma distribuição mais equitativa dos sacrifícios e a coragem de negociar com Bruxelas um futuro melhor para o país. Costa e Centeno fizeram cedências, mas conseguiram também alguns recuos e a luz verde da CE, com direito às advertências a que já todos nos habituámos nesta espécie de teatro europeu. É a negociação, estúpido!

Os tempos não têm sido de ócio em São Bento. Como se o Governo fosse durar quatro meses em vez de quatro anos… Só espero que o país seja capaz de acompanhar o ritmo de tanta mudança em catadupa. Há que reconhecer, no entanto, que Costa e os seus ministros não têm sabido comunicar nem explicar aos cidadãos o que estão a fazer. O exemplo mais perfeito é o dossiê OE, em relação ao qual toda a gente diz tudo e o Governo apenas reage.

António Costa já tinha avisado que ia colocar mais dinheiro no bolso dos portugueses, sobretudo dos mais desfavorecidos. Não é nenhuma surpresa, é a esquerda a trabalhar. Se vai resultar ou não, não sabemos: temos de esperar pela última cena. Certo é que a obra do Governo anterior deixará memória, mas não teve um grande final. Todavia, já que pagámos o bilhete, sentemo-nos confortavelmente a assistir a este novo espetáculo.

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