To “Brexit” or not to “Brexit”

A questão do “Brexit” coloca aos britânicos e à União Europeia (UE) em geral um dilema desconcertante. As implicações podem ser tão dramáticas para o futuro da UE como a conhecemos que até o grande William Shakespeare teria dificuldade em dramatizar mais a situação. Haverá “Brexit” ou não haverá “Brexit” – eis a questão. O acordo alcançado nesta sexta-feira não garante nada – tudo depende do referendo britânico. Mas abriu mais brechas numa Europa já dilacerada pela incerteza e pelas desigualdades. As exceções acordadas correm o risco de fazer esboroar o sonho europeu, mesmo que o Reino Unido fique.

Os britânicos estão descontentes com o que a UE tem para lhes oferecer. Não são os únicos: muitos europeus se questionam hoje em dia sobre que Europa temos e que Europa queremos. Incluindo os portugueses, mesmo os europeístas. Apesar da discussão, que é urgente, todos os Estados-membros fazem por respeitar o essencial dos tratados. Todos, exceto o Reino Unido, que já goza de um estatuto de exceção em várias matérias, como por exemplo a moeda única, a união bancária, a política de imigração e asilo, o espaço Schengen e a política de defesa. Por outras palavras: a Grã-Bretanha já pouco pertence à UE. E é ela própria que se tem vindo a autoexcluir. Mas não chega: os britânicos querem mais exceções. Querem ser membros sem pertencer. Ora, querer fazer parte de algo mas não adotar as suas regras fundamentais e abrir exceções para tudo é igual a nada.

Durante a campanha eleitoral britânica em 2015, David Cameron entendeu sossegar os seus compatriotas eurocéticos com a promessa de um referendo sobre a permanência na UE. Com isso, encostou-se a si próprio à parede, acordou o gigante adormecido e agora vê-se e deseja-se para o amansar. O primeiro-ministro britânico tem uma batata quente nas mãos, que quis transferir para a Europa, colocando-lhe o ónus de oferecer condições que agradem ao Reino Unido ou responsabilizá-la pela saída de um Estado-membro. A Europa, solícita, desdobrou-se em pequenos-almoços que rapidamente se transformaram em jantares, disposta a ceder à chantagem anglo-saxónica. Pena foi não se ter esforçado tanto quando Portugal e Irlanda precisaram de assistência financeira, em parte por culpa de regras económicas impostas por Bruxelas e de uma moeda única mal desenhada e sem mecanismos de escape. Ou quando ainda há menos de um ano ameaçava com um “Grexit” uma Grécia disposta a aceitar tudo para ficar. Irónico? Não. Talvez paradoxal, mas é assim a União Europeia dos tempos modernos. Nada mais espelha a crise que lhe vai na alma do que o desprezo pela igualdade entre os Estados, totalmente contrário aos seus princípios fundadores.

O acordo alcançado nesta cimeira do Conselho Europeu é histórico. Infelizmente, não pelas melhores razões. Temo que se tenha aberto definitivamente a porta ao fim da UE. O regime de exceção é tão excecional que os próprios britânicos devem neste momento ter dúvidas se ainda são ou não um Estado-membro. A isenção de contribuírem para eventuais resgates de países da zona euro até é aceitável, uma vez que o país está fora do euro. A garantia de que o Reino Unido não será inserido em mudanças no sentido de uma maior integração europeia vem apenas reforçar o já existente sentimento de não pertença do país. Porém, os pontos do acordo que encerram maior perigo são o travão dos benefícios sociais a imigrantes (ainda que durante sete anos, e não os treze inicialmente pedidos por Cameron) e os novos poderes para deportar eventuais criminosos. Numa Europa onde se tem visto proliferar o nacionalismo e a xenofobia, dos quais sabemos que o caminho para o totalitarismo é apenas um pequeno passo, ficam assim escancaradas as portas para este tipo de movimentos. E agora apadrinhado pela UE.

Não é desejável um “Brexit”, um “Grexit” ou qualquer exit. Todos têm a ganhar se o Reino Unido ficar: em unidade, em coesão, no mercado único, nos fundos europeus (para os quais os ingleses são dos principais contribuintes) e no contrabalançar das políticas alemãs. Contudo, a permanência não pode ser a qualquer preço. O acordo alcançado é apenas um aprofundar da autoexclusão britânica e das desigualdades entre Estados-membros, com um que é uma espécie indefinida de qualquer coisa que não se sabe onde assina e os restantes 27, que não têm direito a exceções. Fica mais do que claro que temos uma Europa a duas velocidades e com dois pesos e duas medidas no tratamento dos diferentes Estados e nas concessões que está disposta a fazer por eles. Depois dos atrozes esforços económicos impostos a vários países, nomeadamente Portugal, para cumprir o Tratado Orçamental, é, no mínimo, um insulto pedir a 27 países que esqueçam os princípios dos Tratados fundadores para agradar a um só país que, para todos os efeitos, já tem mais do que um pé fora da UE.

Na verdade, depois de tanto esforço e tanta refeição sucessivamente adiada, nada garante que o Reino Unido fique efetivamente. Tudo depende do referendo de 23 de Junho. Por muito vantajoso que seja o acordo que David Cameron leva para casa, o voto dos eleitores é algo que não controla. E corre mesmo o risco de que o feitiço eleitoral que tentou ao espoletar todo este processo se vire contra o feiticeiro.

Os desafios são enormes. A UE está à deriva. Os elos da corrente estão a partir, deixando-a cada vez mais afastada da sua âncora. Há que fazer esforços para não perder nenhum dos elos, mas obrigar vinte e sete a correr atrás de um pode levar à desintegração completa. Porque um não pode ser maior do que os restantes; todos são necessários nesta corrente. To “Brexit” or not to “Brexit”: eis a questão onde se joga o futuro da Europa.

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