Cavaco Silva não foi o Presidente dos portugueses

Desde o 25 de Abril de 1974, vamos no quarto Presidente da República (PR). Todos diferentes, cada um marcou a política nacional à sua maneira, com momentos altos e baixos mas, de uma forma geral, sem sobressaltos de maior (à exceção, talvez, de Jorge Sampaio, que permitiu a transição de governo Barroso - Santana, para mais tarde ter de dissolver a Assembleia – uma escorregadela que acabou por manchar decisivamente o seu mandato, apesar de ter sido talvez o PR mais consensual no seio da sociedade portuguesa). No entanto, nunca um PR foi tão criticado e impopular como Cavaco Silva, em todos os quadrantes da sociedade portuguesa.

Cavaco é, indiscutivelmente, um caso único na política portuguesa. Um dos homens que mais anos esteve no poder. Para quem recusa a ideia de ser profissional da política, espanta a meticulosidade com que conduziu a sua carreira (política), planeada ao milímetro, e que lhe valeu dez anos como líder de um governo e mais dez de Presidência, cinco vitórias em seis eleições disputadas, quatro delas com maioria absoluta.

Desprovido do dom da palavra, é um homem que tem, e sempre teve, muita dificuldade em comunicar, não só em termos verbais, como também na vertente mais inata da linguagem corporal e expressiva. Não tem o carisma de um Mário Soares, por exemplo, e está muito longe de ser um “animal político”. É rígido, frio, distante e pouco ou nada espontâneo – e nas raras vezes em que tentou sê-lo ficou a desejar não ter sido.

As suas intervenções revelaram-se muitas vezes desastrosas e despropositadas. O “passar a mensagem” não lhe flui naturalmente, acabando por sair com um tom forçado, e muitas vezes dando azo a declarações (muito) infelizes. Dou como exemplo o episódio do estatuto dos Açores em 2008. Lembro-me de estar a ver o noticiário na televisão em horário nobre, em que foi anunciado que o PR interrompera as suas férias para fazer uma importante declaração ao país. Perante o tom grave com que tal era anunciado, quase parecia que iríamos entrar em guerra. No final, a montanha pariu um rato. O que estava em causa era a diminuição dos poderes do Presidente. E talvez tivesse razão. Mas não conseguiu passar a mensagem.

Porém, a declaração mais infeliz foi proferida em Janeiro de 2012, quando se lamentou acerca da insuficiência da sua pensão de reforma, numa tentativa desastrada de se solidarizar com os reformados portugueses, dos quais 80% auferia uma pensão média de 364 euros. Um momento, aliás, que constitui um ponto de viragem na sua curva de popularidade, que a partir daqui atinge valores negativos. Foi a partir daqui que os portugueses desistiram de Cavaco.

Muito mais grave do que o problema de comunicação é a falta de isenção. Em quase dez anos de mandato, Cavaco Silva nunca conseguiu esconder a sua tendência pró-PSD. A convivência com o governo de José Sócrates navegou por mares altamente crispados, algo que já se adivinhava conhecendo o caráter de um e do outro. O ex-primeiro-ministro não lhe facilitou a vida e o azedume foi subindo de tom, culminando na admoestação de Cavaco por não ter sido informado acerca do famigerado Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) 4. Estabeleceu-se assim o ponto de partida para o chumbo do mesmo, com a consequente queda do governo socialista e a chamada da troika.

Mais tarde, já com o governo de Passos e Portas, Cavaco Silva foi bem mais condescendente e amparou com as duas mãos os quatro anos do executivo. É certo que no início do governo de coligação, discordou de várias medidas e manifestou claramente essa discordância. Falo, por exemplo, da subida da taxa social única (TSU) dos trabalhadores e descida da TSU dos patrões – crise que até ajudou a resolver convocando um Conselho de Estado para o qual foi ineditamente chamado o então ministro das Finanças, Vítor Gaspar. Contudo, é flagrante que todos os discursos solenes que proferiu, sem nenhuma exceção, sejam discursos de Ano Novo, do 10 de Junho ou do 25 de Abril, foram de claro apoio ao governo de direita, legitimando as medidas adotadas por este. O que torna difícil gerar consensos, como tanto pediu, por vezes quase que lançando um ultimato, em que o ónus da cedência parecia implicitamente colocado sobre os partidos da oposição, nomeadamente o PS.

Apesar das circunstâncias difíceis que o país atravessou nestes últimos anos, curiosamente poucas vezes o PR foi verdadeiramente solicitado a intervir. Talvez porque, conhecendo Aníbal, o povo já pouco esperasse dele. Foi acusado inúmeras vezes de guardar um constrangedor silêncio quando se esperava que interviesse. O exemplo mais flagrante foi durante a crise do “irrevogável” na coligação no verão de 2013, em que Paulo Portas ameaçou bater com a porta. Quando o país se afundava na incerteza da queda do governo, de Belém tardou em chegar algum sinal de vida. Cavaco partiu para as Selvagens, deixando para trás o seu povo no meio de um furacão. Este foi o momento em que o PR poderia e deveria ter tido o papel mais relevante da sua história. Mas perante as várias opções, que incluíam eleições antecipadas e um governo de iniciativa presidencial, Cavaco Silva pôs-se à defesa e decidiu não decidir. Mais uma vez, empurrou para as mãos do PS a responsabilidade de ser obrigado a ceder para formar o consenso que o governo quisesse, o que o PS rejeitou, num rasgo de coerência e integridade. No final, Cavaco limitou-se a si próprio a aceitar um governo PSD/CDS remodelado. A ideia de um consenso alargado entre PSD, PS e CDS e eleições antecipadas dentro de um ano não seria completamente descabida. Mas como o próprio Cavaco Silva disse, “só quem não conhece os partidos é que pode imaginar que qualquer que seja o Presidente da República os pode forçar a fazer o que não querem”. Muito menos um PR duro, frio e reprovador numa sociedade que o próprio ajudou a polarizar. Este será porventura o seu maior ato de contrição: não ter sido capaz de fomentar consensos entre os partidos.

Pelo meio, resistiu ao escândalo do BPN, que o implicou a si e à sua família em plena campanha eleitoral para as Presidenciais de 2011. Mas não lhe abalou a vitória por maioria absoluta, embora com menos 500 mil votos do que na eleição anterior. Nem fez vacilar o seu apoio a Dias Loureiro, seu amigo e conselheiro de Estado, que acabaria por vir a ser constituído arguido no caso, até à data sem se lhe conhecer qualquer desfecho.

Na reta final do seu mandato, Cavaco Silva teve ainda a dura provação da formação de governo após as eleições legislativas de 4 de Outubro de 2015. Começou por impôr aos eleitores portugueses o seu desejo: o de um governo assente numa maioria absoluta. Acabou por ter o que queria mas da forma que não queria. Foram tempos de difícil reflexão, que motivou a ausência nas comemorações oficiais do 5 de Outubro. Dizia ter previsto todos os cenários possíveis. Exceto, parece-me, aquele que viria a acontecer: o derrube do governo da coligação PàF na Assembleia e a apresentação de um governo socialista assente numa inédita maioria parlamentar de esquerda. Uma opção que custou a engolir, e que Cavaco procrastinou refugiando-se mais uma vez na Madeira e depois através de infindáveis audiências a inimagináveis economistas, banqueiros e empresários. Ouviu todos, exceto o órgão que existe para ouvir em crises como esta: o Conselho de Estado, que assim ficou votado ao desprezo. No final, experimentou o maior amargo de boca da sua vida presidencial e abriu as portas aos partidos de esquerda e indicou António Costa para primeiro-ministro (PM). Mas não o indigitou. E isso quis dizer muito.

Mais recentemente, já à porta de saída, Cavaco Silva dedicou-se às condecorações. E até aqui não conseguiu deixar de ser polémico, ao condecorar Sousa Lara, que tentou impedir a candidatura de uma obra de José Saramago – o “Evangelho segundo Jesus Cristo” – ao Prémio Literário Europeu por considerar que esta não representava Portugal.

Guardei para o fim o aspeto, quanto a mim, mais grave de todo o mandato de Cavaco Silva, tão pouco discutido na altura, mas que abreviaria este meu artigo, pois considero que a sua gravidade deveria ter culminado na demissão do PR. Refiro-me ao caso das alegadas escutas no Palácio de Belém por parte do gabinete do então primeiro-ministro José Sócrates. Acabou por se perceber que o caso tinha sido encomendado ao jornal “Público” por um assessor de imprensa e homem de confiança de Cavaco, Fernando Lima, que terá atuado em nome do próprio Presidente. Cavaco Silva tentou, desta forma, dificultar de forma mesquinha a vida de Sócrates, criando um engodo para o acusar de espionagem. Na minha opinião, um ato gravíssimo, criminoso até, indigno de quem quer que seja, especialmente daquela que deve ser a mais alta figura da nação. Até hoje, não ficaram claros os contornos do caso e não se assistiu a consequências, responsabilizações nem a uma cabeça presidencial a rolar. Tenho de reconhecer que Cavaco não foi muito bom a cozinhar a diversão, mas foi muito bom a abafá-la.

Aníbal Cavaco Silva teve, sem dúvida, uma Presidência conturbada por uma conjugação adversa de várias circunstâncias: uma crise económica mundial sem precedentes, um governo (de Sócrates) minoritário, um resgate financeiro externo, uma solução governativa e um Parlamento inovadores e uma Europa confusa e desagregada. Há que reconhecer que a vida de Cavaco Silva em Belém esteve longe de ser fácil. Mas, no meio da tempestade, os portugueses precisavam de ver no seu Presidente uma âncora que não os deixasse à deriva. É nos momentos mais difíceis que nascem os grandes estadistas. E Cavaco Silva não foi o Presidente dos portugueses. A sua Presidência deixa profundas marcas de divisão, polarização e esvaziamento e descredibilização da figura do PR. De tal forma que o mote comum dos vários candidatos às presidenciais de 2016 foi quererem ser o oposto de Cavaco.

Agora que os dez longos anos de Presidência de Cavaco Silva estão quase no fim, e porque antes não foi possível, resta-nos respirar de alívio. Permanecerá um mistério como foi que conseguiu ser eleito para um segundo mandato, só explicado pela inércia de pensamento do povo e pela velha máxima “à falta de melhor”. Tomando as palavras de Catarina Martins a propósito do discurso do 10 de Junho do PR, este momento é bom porque é o último.

Etiquetas: ,