Marcelo, o Promissor

Os portugueses têm um novo Presidente da República (PR). O quinto eleito democraticamente e que compara com antecessores de peso. Do alto dos 52% de votos com que foi eleito, dir-se-ia que é consensual. Porém, a esquerda, que por estes dias ganha a maioria do país, não o aplaudiu unanimemente. Que tipo de PR será Marcelo Rebelo de Sousa? Político ou comentador? Institucionalista ou vedeta mediática? Apaziguador ou mobilizador? Da esquerda da direita ou da direita da esquerda?

Marcelo Rebelo de Sousa conduziu como ninguém uma campanha à medida do que precisava para vencer: minimalista, económica, que apostou na figura de um homem só. Uma campanha inovadora, que ficará nos manuais, como o próprio disse. Mas foi também uma campanha vazia, despolitizada, e em grande parte a ele o devemos. Durante os quinze anos como comentador político, nunca teve de responder por funções executivas, limitou-se a analisar as execuções de outros e conhecemos-lhe algumas opiniões contraditórias. Este “cataventismo” tem sido utilizado como arma de arremesso contra ele, incluindo pelos da própria família política. Contudo, e já o disse, parece-me excessivo afirmar que não se sabe o que Marcelo pensa. O seu percurso e as suas posições fazem parte da vida dos portugueses há décadas e, embora com algumas contradições expectáveis em quem expõe o seu pensamento durante tão longa evolução dos tempos, com certeza ninguém espera ouvir Marcelo a defender puros ideais de esquerda ou vê-lo tornar-se agnóstico.

Mais incerto será o seu desempenho num cargo político que, embora não seja executivo por excelência, implica tomar decisões, ter intervenções e responder por elas. Numa conjuntura assaz exigente – um país que acabou de sair de um programa de ajustamento financeiro, com uma economia ainda extremamente frágil e dependente, com profundas dilacerações sociais e divisões internas, com um contexto governativo e parlamentar inédito e potencialmente periclitante, à beira de uma Europa estraçalhada e de incerteza política, económica e social à escala global – tudo o que emanar de Belém poderá ser água ou fogo. E a verdade é que Marcelo não tem muita experiência em cargos políticos de monta. Foi deputado, secretário de estado, ministro e dirigente do PSD, chegando à liderança do partido entre 1996 e 1999 – cargos pelos quais passou sem especial distinção. Por outro lado, Marcelo dá-se bem sozinho, não necessita de equipa e, nesse aspeto, a Presidência da República pareceria ser talhada para si – não fosse o facto de ter de conviver com um Governo, uma maioria parlamentar cerrada, uma Assembleia, vários partidos políticos e agentes económicos e sociais. Será portanto obrigatoriamente confrontado com anuências, críticas e escrutínio a todas as suas ações – só que Marcelo não está habituado ao contraditório.

Falta-lhe também experiência em matéria internacional, que se adivinha crucial tendo em conta os ventos de incerteza política de Espanha, as divergências com Angola e as danças negociais com Bruxelas. Neste campo, presumo que Marcelo Rebelo de Sousa será um PR afetuoso, cordial e capaz de quebrar barreiras protocolares através da sua espontaneidade. No entanto, não só de afetos se fazem as conquistas políticas e económicas além-fronteiras. E firmeza, assertividade e objetividade não são os predicados que melhor definem Marcelo.

Marcelo é um comunicador nato. Está habituado a ser protagonista e a marcar presença em todas as circunstâncias. A ser ouvido mais do que a ouvir. Estas qualidades podem ajudar na antecipação e resolução de problemas mas, por outro lado, o seu caráter interventivo pode dar lugar à ingerência, quando em algumas situações o silêncio e o recato são os melhores conselheiros de um PR.

Há que reconhecer que Marcelo iniciou funções de uma forma original e surpreendente. Apresenta-se como um Presidente próximo das pessoas. Transformou a sua tomada de posse em vários dias de festa, para a qual chamou o povo, brindando-o com as suas deslocações a pé no passeio de todos nós e chamando todas as gerações para um concerto. Escusou-se a faustosas comitivas estrangeiras, que foram substituídas por poucos mas bons convidados carregados de significado. Abriu a sociedade portuguesa à diversidade e tolerância, reunindo representantes de 18 confissões religiosas numa mesquita, uma casa de culto hoje em dia vista com ódio e desconfiança por muitos. Estendeu as comemorações à segunda maior cidade do país, o Porto, amenizando as rivalidades norte-sul, tão descabidas num país da dimensão do nosso. No seu discurso de tomada de posse, afirmou-se como “um servidor da causa pública”, falou de “justiça social”, constituiu-se como defensor de “aqueles que a mão invisível apagou, subalternizou ou marginalizou”. Marcelo está a ir pelo lado certo pois, não sendo o PR um cargo executivo, quer-se que seja mais próximo das pessoas, que faça a ponte entre os cidadãos e os decisores. Nesse aspeto, Marcelo mostrará, ao contrário do seu antecessor, que o PR pode e deve fazer muito mais durante a sua magistratura. Porém, tanta proximidade e afeto vêm com uma certa dose de exagero. Marcelo Rebelo de Sousa parece estar a cultivar a imagem do homem, quase divinizando-a, talvez para acumular capital positivo que o coloque em posição de mais tarde fazer as suas próprias imposições ao Governo e à Assembleia.

E os consensos… Marcelo não dá folga aos partidos nesta matéria: “Temos de cicatrizar feridas destes tão longos anos de sacrifícios, no fragilizar do tecido social, na perda de consensos de regime, na divisão entre hemisférios políticos.” E tem toda a razão. Os quatro anos do governo de Passos e Portas, escudado por Cavaco Silva, cavaram um fosso político, social e geracional no seio da sociedade portuguesa, que urge preencher. Marcelo Rebelo de Sousa tem o jogo de cintura e a cordialidade que faltaram a Cavaco. Mas, apesar de contar com o espírito negociador e o malabarismo de António Costa, a rutura entre as duas latitudes políticas é grande e a esquerda neste momento sente-se bem a cavalgar sozinha o caminho que a direita por sua vez lhe negou nos últimos anos. Veremos se e como Marcelo conseguirá fazer a quadratura do círculo. Com Passos Coelho à frente do PSD, dificilmente haverá lugar a consensos: Passos tudo tem feito para o dar a entender e os restantes líderes vêem nele a continuidade que rejeitaram. Mas, como escreveu Daniel Oliveira, a retórica do PR poderá ser outra se a liderança do PSD mudar. E, nesse cenário, e com o capital político que se prepara para acumular, poderá deixar de ser o “melhor amigo” de António Costa para voltar a criar espaço para o PSD. Com certeza, quem ficará apeado nesse caso serão os partidos da esquerda.

Marcelo Rebelo de Sousa entrou na Presidência de forma verdadeiramente promissora. Trouxe esperança. Mostrou-se inclusivo, abrangente, próximo. Quer ser o “Presidente de todos sem exceção”. E foi, de facto, pelo menos nestes primeiros dias. Acenou à direita e piscou o olho à esquerda, foi aplaudido de pé pelos partidos de direita que o desprezaram e pelo PS. Mas mesmo com tanto afeto, não embeveceu PCP, BE e PEV, que se recusaram teimosamente a conceder-lhe o benefício da dúvida. Persistem muitas questões sobre que tipo de Presidente vai ser Marcelo. Talvez não tenha muita experiência executiva. Mas se conseguir puxar para cima os portugueses e animá-los com o seu entusiasmo, já terá prestado um bom serviço à nação. Porque, como o próprio disse, “o essencial, é que continuamos a minimizar o que valemos. E, no entanto, valemos muito mais do que pensamos ou dizemos”. Será suficiente para, finalmente, ficar na História com memória positiva? Veremos. Mas, como disse Miguel Sousa Tavares, ter Marcelo Rebelo de Sousa como PR não me tira o sono.

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