A luta no porto de Lisboa como em França

Estamos tão habituados a abdicar de direitos pelo suposto motivo do interesse nacional e da revitalização da economia, que nos soa a estranho e até perverso haver quem lute aguerridamente por tais direitos. Estamos demasiado habituados. Demasiado conformados. Ao cabo de anos de recuo, onde está a recuperação económica? Para onde foi o crescimento e a redução do défice? Os salários desceram, a precariedade aumentou e os direitos perderam-se. Será assim tão errado e criticável haver quem lute, só porque abala o conformismo dos que não se ergueram e deixaram que tudo lhes fosse tirado? Seja no porto de Lisboa ou em França, a luta é pela dignidade no trabalho. Devia ser a luta de todos nós.

Os confrontos entre estivadores e operadores do porto de Lisboa duram há mais de três anos. Há demasiado tempo. Neste período, houve 441 dias de greve, a atividade do porto de Lisboa reduziu para cerca de um terço da carga que era movimentada há 10 anos. Quer se tenham perdido 100 mil ou 300 mil euros por dia, consoante a fonte, tudo é em demasia. Os estivadores são acusados de deterem demasiado poder, de quererem controlar o trabalho portuário, de reclamarem um estatuto que não existe na lei, de terem já demasiadas regalias e salários que rondam os 5 mil euros. Algumas destas afirmações são verdadeiras. O poder dos estivadores advém da sua união e sindicalismo, que extravasa fronteiras e estende raízes para outros portos europeus e mesmo mundiais, algo que falta em muitos setores de emprego em Portugal. O poder dos estivadores advém também de trabalharem num setor vital para a economia, pelo que o que se passa nos portos afeta o crescimento e a competitividade nacional, algo de que os trabalhadores portuários têm plena consciência. A progressão automática na carreira que reivindicam não está contemplada na lei, porque não são funcionários públicos (e em lado nenhum devia estar contemplada, porque uma pessoa não se torna automaticamente bom trabalhador apenas por trabalhar há determinado número de anos). Quanto aos salários, que se diz chegarem a 5000 euros, não me vou pronunciar, pois não encontrei uma fonte credível acerca dos mesmos. Admito que sejam elevados, mas à custa de uma enorme carga de horas extraordinárias.

Contudo, há muitos factos que não se dizem, ou dizem-se em surdina. Porque a desinformação é o melhor meio de comunicação para formar a opinião pública tal e qual como se pretende – e aqui os meios de comunicação social não estão a cumprir o seu dever de informar. E o que não se diz, ou se diz pouco, é que nestes sucessivos anos de negociações, os estivadores já aceitaram reduzir a massa salarial anual em 2 milhões de euros. Os operadores contratam outros trabalhadores sem qualificação e, por isso, mais baratos. A Porlis, do grupo Mota-Engil, foi criada como um concorrente paralelo para permitir reduzir salários e estabelecer vínculos mais precários. Os salários estão congelados há 6 anos e foram criados dois níveis salariais mais baixos, com 20 e 40% de redução respetivamente (os operadores queriam redução de 50%). Há trabalhadores com contratos mensais e até com contratos por turnos de 8 horas há mais de 5 anos. O Sindicato propôs a passagem gradual a efetivos de cerca de 70 estivadores, a maioria dos quais em regime de trabalho eventual há cerca de 5 anos, proposta essa recusada pelas associações patronais.

Dada a especificidade do setor e as suas implicações para a economia nacional, o Governo tinha de intervir para mediar um acordo entre as partes o mais depressa possível. Pedro Passos Coelho resolveu esta semana empurrar o Executivo para a arena, mas esqueceu-se que deixou arrastar o problema nos últimos três anos sem que o seu Governo levantasse um dedo sequer. E, claro, a sua proposta era o do confronto, através de uma requisição civil, em vez de se sentar com ambas as partes e negociar cedências, o que sempre dá mais trabalho. Não sei se o problema está resolvido após esta maratona negocial de 15 horas. Provavelmente não. Mas houve nítidos progressos e do cesto da gávea vislumbra-se enfim uma solução para esta contenda. O Governo de António Costa vai com certeza reclamar para si os louros, e talvez com alguma razão, já que parece ter conseguido o que se julgava impossível e que outros não conseguiram (este foi mais um voo bovino). Não importa se o mérito é da ministra, dos sindicatos ou dos patrões, não importa quem cedeu mais – o que importa é que, do que se sabe, o acordo alcançado parece repor alguma justiça neste desequilíbrio de forças. Todos saíram a ganhar, incluindo o país.

Não estão aqui em causa os riscos da profissão. Outras há em que se arrisca a vida e ganha-se bem menos, como os polícias e bombeiros. A questão aqui é este sentimento nacional de querer nivelar por baixo. Quem se senta confortavelmente no sofá com o seu salário miserável e condições precárias e não vai à luta, acha mal que outros se arrisquem, pisem linhas vermelhas e alcancem condições de trabalho e de vida mais dignas. Mesmo dentro da classe dos estivadores, há os que aceitaram perder direitos, como em Sines e em Leixões, e os que recusam ver o seu trabalho desvalorizado, como é o caso dos de Lisboa. É o reflexo de um país dividido, mesmo dentro dos setores mais improváveis, onde o cantinho de cada um tomou o lugar do bem coletivo.

Já vimos este filme demasiadas vezes, e estamos a vê-lo de novo, não só em Portugal, como no resto da Europa. As greves e manifestações sem fim à vista em França, onde um governo dito socialista propõe incompreensivelmente uma nova lei laboral que procura flexibilizar despedimentos, impor um teto máximo para as indemnizações, alargar as exceções às 35 horas de trabalho semanal e oferecer primazia ao acordo de empresa relativamente ao acordo de setor. É para não verem os seus direitos roubados que os franceses fazem das ruas o seu palco de reivindicação e do bloqueio ao abastecimento de combustível uma das suas armas. Excessos e violências à parte – que são condenáveis e não devem ter lugar no seio de pessoas que, por serem civilizadas, estão conscientes dos seus direitos e deveres e reusam abdicar deles – os franceses sabem que se afrouxarem nas ruas têm à sua frente décadas de escravidão. E são conhecedores do enorme trunfo que têm nas mãos: o Euro 2016, que condiciona Hollande e Valls a resolver a contenda rapidamente, mesmo que isso implique pesadas cedências, que aliás já estão a ser acomodadas no discurso do primeiro-ministro.

As lutas laborais sempre fizeram parte da nossa história. Foi através de greves, manifestações e reivindicações que se conseguiu em todo o mundo conquistas como a semana de trabalho de cinco dias, as 35 ou 40 horas semanais, as férias pagas, entre outras. Foi através de luta que se foi conseguindo evoluir da escravidão para o trabalho pago e com regras. Baixar os braços e aceitar todas as arbitrariedades, venham elas de governos, patrões ou dos Mercados, é perder tudo isto e retroceder século a século. Criticar quem luta só porque já tem condições melhores que as minhas é embarcar no perigoso jogo de dividir para reinar. É não perceber que a dignidade e humanidade de todos morre mais um bocadinho com cada estivador precário, com cada médico mal pago por mais de 24 horas consecutivas de trabalho, com cada operário há anos a recibos verdes, com cada advogado que aceita o salário mínimo nacional. Porque sabemos o que aconteceu na Europa há 70 anos atrás, e ainda nos lembramos como era Portugal há 50 anos, a luta de cada uma destas pessoas em Portugal, em França ou em qualquer parte do mundo deve ser a nossa luta.

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