A União Europeia e os Abba no século XXI

A Comissão Europeia (CE) não vai impor sanções a Portugal pelo défice excessivo. Por enquanto. Viveremos em suspenso até Julho, altura em que os dados rolarão de novo para decidir a nossa sorte. O que me traz à memória “The winner takes it all” dos velhinhos Abba – e todos sabemos como acabaram: desmembrados, zangados, cada um para seu lado, enfim, um fabuloso projeto findo. A União Europeia já esteve mais longe de ser os Abba do século XXI. Mas a imposição de sanções ao nosso país não dependerá do cumprimento de metas do défice nem de reformas. Nunca dependeu. A Waterloo de Portugal será decidida aqui ao lado, em Espanha.

Nenhuma meta do défice foi cumprida nos últimos quatro anos, apesar dos sacrifícios impostos aos portugueses. As políticas foram neoliberais, o governo era de direita e tinha mérito de bom aluno. Tudo do agrado de Berlim e de Bruxelas. No entanto, os resultados estão à vista: nada disto resultou. Ainda assim, nestes quatro anos nunca como agora se acenou com o papão das sanções. Porquê? Precisamente porque as políticas eram neoliberais e o governo era de direita e obedecia sem questionar aos preceitos da CE.

Hoje, tudo é diferente. Em poucos meses, a Europa mudou muito. Primeiro, foi o finca-pé de Atenas, que resultou afinal numa humilhação só comparável à que o Tratado de Versalhes infligiu à Alemanha no rescaldo da I Grande Guerra. Na reta final de 2015, os portugueses surpreenderam com a audácia de construir uma “geringonça” de esquerda, que pretende contrariar a política de empobrecimento e de austeridade que a CE prega na sua cartilha. E, pouco depois, teve início a novela espanhola (cujo enredo está tão emaranhado que mais se assemelha a uma novela mexicana, já com o trabalho facilitado pela partilha do idioma), que há cinco meses não consegue melhor do que um governo de gestão e umas quantas tentativas desesperadas de formar um executivo onde se consiga conviver para governar.

E é aqui que reside a tónica de Bruxelas. Nunca acreditei que houvesse real intenção de sancionar Portugal. Pelo menos, não para já. Tal seria incompreensível, porque seria inédito no quadro do não cumprimento das metas do défice quer no nosso país, como já referi, quer face a outros países como França e Itália, que também não as cumprem. Mais do que inédito, seria profundamente injusto. Ainda para mais tendo em conta que o défice português de 2015, que ascendeu a 4,4%, se ficou a dever ao desastroso desfecho do Banif, que teve o dedo do Banco Central Europeu – diria mesmo uma dedada enorme, que manchou irremediavelmente todo o processo.

A verdadeira intenção da CE é política. Política externa, internacional. Trata-se de um aviso para Espanha, que após os ensaios de viragem à esquerda tentará escolher um novo governo dentro de pouco mais de um mês, mas sem garantias de que as eleições de Junho mudem alguma coisa no impasse governativo que se criou. E é uma advertência para Portugal, que ousou mesmo virar à esquerda e mostrar que o ajustamento económico pode ser feito de forma alternativa aos cortes cegos no Estado social e nas conquistas de décadas. Enquanto a CE coloca todo o seu afinco na discussão de défices nominais de 2,3% ou 2,7%, redução de défices estruturais (que ninguém sabe verdadeiramente como se calcula) de 0,2 ou 0,6%, cortes de 730 milhões ou alívio de 180 milhões (o sr. Eduardo Catroga aplicaria um bom epíteto a estes… enfim, detalhes), os olhos fecham-se a outros países onde grassam governos de extrema-direita que ameaçam as liberdades. Na Hungria, os direitos humanos e as liberdades são cada vez mais uma miragem oculta atrás de muros de arame-farpado. Na Polónia, os meios de comunicação social são controlados pelo executivo e ontem foi notícia a proibição de qualquer referência ao comunismo no espaço público. A ver vamos onde levam os partidos de extrema-direita que avançam rapidamente na Alemanha e que até venceram eleições na Áustria.

Contudo, não são estes ataques aos valores europeus de liberdade e de solidariedade que preocupam a CE. O que preocupa a CE é que alguns povos optem por um caminho mais à esquerda. O que ocupa a CE é advertir e sancionar quem se quer libertar da opressão do empobrecimento e do retrocesso da civilização que hoje temos. O que a CE – um órgão sem qualquer escrutínio eleitoral – faz é escolher políticas e governos em alguns países e dobrar-se sob os interesses dos governos de outros países. O que a CE faz é uma invasão, uma ingerência.

Está adiada para Julho nova decisão sobre eventuais sanções a Portugal e Espanha por incumprimento do défice. É em Julho, para dar tempo aos espanhóis de refletirem e de se sentirem condicionados quando forem às urnas em Junho. Todavia, não creio que haja sanções daqui a dois meses, pois a Europa continuará perdida noutras batalhas bem mais importantes que teima em não resolver, como a crise dos refugiados ou o Brexit. Para já, nuestros hermanos estão apenas avisados. E a Geringonça portuguesa também.

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