O admirável mundo novo do trabalho

O mundo laboral mudou profundamente na viragem deste século. O que os nossos pais e avós trabalhavam não é igual ao que trabalhamos hoje em dia. As diferenças são abissais: horários, vínculos, progressões, produtividade. Este é um dos motivos do grande fosso intergeracional, que se tem vindo a agravar. Os nossos pais não compreendem porque fazemos horas extraordinárias não remuneradas, porque chegamos tarde às nossas casas e às nossas famílias e ainda trazemos trabalho para casa. É uma frase gasta, mas no tempo deles não era assim. Porque o tempo deles foi de conquistas. E o nosso tempo tem sido de perdas.

Atualmente, em qualquer empresa ou estabelecimento, a regra é sair depois da hora. Sem qualquer compensação remuneratória ou sequer um desconto de horas nos dias seguintes. Está implícito que assim seja e quem não obedecer a esta regra encapotada é um mau profissional. De que serve o debate entre 35 e 40, quando se faz 60 horas semanais sem pagamento extraordinário? As pausas esfumam-se na espuma dos dias. O almoço nutre em função do tempo disponível e não raramente se teletransporta para horário de lanche ou tem a qualidade alimentícia de uma sandes engolida por entre pausas do trabalho à secretária. A perspetiva de faltar por doença ou para ir ao médico é um drama, e assim os trabalhadores arrastam-se para o emprego quer tenham febre, enxaqueca ou uma perna que teima em não obedecer e adiam interminavelmente os exames e as consultas que deviam fazer. Jovens mães deixam os seus filhos de poucos meses noutras mãos e encurtam licenças de parentalidade.

Já não há trabalhadores, há colaboradores. Pessoas a quem é generosamente concedida a magnânima oportunidade de serem sugadas até ao tutano por uma empresa e que se devem sentir lisonjeadas por isso. O colaborador colabora, quiçá porque quer, o que suaviza as relações laborais e alivia os deveres do empregador para com o empregado.

E há avaliações de desempenho.  Desempenho que se resume a produtividade, aos números que fabricamos, com ou sem qualidade. Premeia-se não o bom trabalho, mas o muito trabalho. Transformam-se os trabalhadores em máquinas de produção e o trabalho em processos automáticos para os quais pensar não é prioritário e pode até ser contraproducente. Iniciativas inovadoras que saem fora da caixa e que requerem um desvio à instalada automatização são fortemente desencorajadas e não chegam a passar de um esboço de ideias.

Emprego estável? Emprego para a vida? São conceitos do século passado, aquele em que os nossos pais viveram. “Ser efetivo” ou “pertencer ao quadro” nada garante: a ameaça do despedimento é uma espada de Dâmocles sempre pendente sobre as nossas cabeças. Os vínculos contratuais são finas linhas esbatidas cujos contornos já mal se distinguem. É para lá dessa turbidez que o trabalho regular se transforma em recibos verdes e que o trabalho suplementar assume a máscara de contratos de prestação de serviços desempenhados por trabalhadores da casa. Incluindo no Estado. E da contratação coletiva nem vale a pena falar – é um castelo de nuvens que se desvaneceu no ar.

Os salários foram caindo dos bolsos com os anos. Os jovens dos nossos dias, aqueles que têm sonhos, projetos de vida e família em perspetiva, auferem proporcionalmente menos do que os seus pais e avós. A filosofia de empobrecimento foi um pretexto para cortar a eito, incluindo o que não precisava de cortes. O desespero leva a aceitar migalhas, espezinhando a dignidade do iliterato e do doutorado. E se tu não quiseres, meu amigo, há por aí mais quem queira. A produtividade portuguesa fica aquém da de muitos países, é verdade. Mas também ficam as condições de trabalho e os meios disponíveis. Um médico presta-se a informático e um gestor também faz as vezes de eletricista. Faltam meios, dizem. Faltam sempre meios. Porque são cem a fazer o trabalho de mil.

É verdade, o mundo laboral mudou. E continua a mudar. Quem nunca chegou ao fim de um dia ou de uma semana de trabalho sentindo-se esgotado, despojado, violentado, tratado com desumanidade? Calando as injustiças dentro do peito fechado, porque fala mais alto o medo de ficar sem nada. As conquistas de outrora são grãos de areia que escapam por entre as mãos secas. Como explicamos aos nossos pais o tanto que se perdeu? Como explicaremos aos nossos filhos que o futuro se esfumou?

Dificilmente o trabalho voltará a ser o que era. Mas não devemos esquecer que foi quando baixámos os braços e a cabeça que tudo se desvaneceu.

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