Esqueçam o burquíni. Vamos proibir a sunga!

Na Europa da democracia, das liberdades e do secularismo, há quem queira espoletar (mais) uma guerra. Desta vez ao burquíni, que foi banido de quinze cidades balneares francesas. Será que o país da moda e dos grandes criadores se sente ameaçado por esta peça de alta costura? Ou será o burquíni antes uma ameaça às mentes securitárias, xenófobas e pequeninas?

O burquíni foi criado há mais de uma década por Aheda Zanetti, uma australiana-libanesa que assim encontrou uma forma de as mulheres muçulmanas poderem praticar desporto guardando respeito pela sua fé religiosa. Apesar de não ser uma novidade da coleção Primavera-Verão 2016, tem tornado mais quente a corrente época estival nas praias francesas. A tal não serão alheios os atentados que abalaram recentemente a França, nomeadamente em Nice, município que também proibiu o burquíni. Os ânimos chegaram ao rubro quando algumas pessoas resolveram fotografar mulheres magrebinas que vestiam este fato de banho, o que deu origem a violentas agressões. A violência não pode ser solução para tudo o que nos desagrada e deve ser condenada. Mas duvido que algum cidadão ocidental reagisse serenamente se se visse a si ou aos seus familiares fotografado intrusivamente por desconhecidos.

Os defensores desta proibição alegam que o véu islâmico e o burquíni são símbolos de uma religião, que podem favorecer o proselitismo e a radicalização islâmica. Exaltam a laicidade do Estado, que julgam ver ameaçada por estas peças de roupa. Defendem que são um elemento opressor da mulher e um obstáculo à integração dos muçulmanos nos países de acolhimento.

Que o Estado queira impor a maneira como nos vestimos é, para nós europeus, simplesmente inaceitável. Então porquê impô-lo a outros? Concordo que o uso do niqab ou da burka, que ocultam completamente o rosto, levantam questões de segurança. Mas o mesmo não se pode dizer do hijab ou do burquíni. Proibi-los é, pois, pura perseguição religiosa.

Quer então dizer que as freiras católicas devem ser proibidas de vestir os hábitos? Que os padres não podem usar sotainas e aos judeus é banido o quipá? E não esqueçamos que o Papa se apresenta sempre num chocante vestido branco. Estas manifestações são permitidas a todas as religiões, mas quando se trata do Islão já se tornam uma ameaça – se isto não é discriminação e xenofobia, não sei que mais lhe podemos chamar.

Mas deixemos a religião e passemos a indumentária comum, para não ofendermos a laicidade. Pessoalmente, não acho que o burquíni prime pela estética. Mas também há muitos fatos de banho feios e nunca vi ninguém a obrigar um banhista a despi-lo por ser um atentado às vistas. Há fatos de surf e de mergulho (alguns com capuz) que, seguindo a mesma lógica, também deveriam ser banidos, porque cobrem todo o corpo e a cabeça. E estaremos todos condenados a prescindir de calças, camisolas e casacos e a tiritar de frio se formos passear na praia no Inverno ou se tivermos o azar de apanhar dias de Verão pouco amistosos. Generalizando para lá das praias, todos somos confrontados com peças de roupa que por vezes ferem a nossa suscetibilidade, como por exemplo calções ultracurtos por onde espreitam insolentemente nádegas celulíticas ou mini-camisolas de onde extravasam “pneus” de camião. Tudo isto é permitido. Porquê? Porque há liberdade e tolerância pelas preferências individuais de cada um, desde que não ofendam a liberdade dos outros. E uma mulher que use um burquíni ou um homem barrigudo com uma tanga apertada (ou sunga, como se diz no Porto) não interferem com a minha liberdade na praia.

É verdade que as mulheres ocidentais se vêem constrangidas a cobrir o cabelo quando visitam países árabes. Isso é fruto da intolerância que tanto criticamos nessas culturas. Mas não podemos fazer alarde dos nossos valores de liberdade e igualdade de género quando queremos impor obrigações (ou proibições) semelhantes nos nossos países. Muitas mulheres muçulmanas querem continuar a usar o véu e isso tem de ser respeitado. A discussão sobre o seu significado como elemento opressor feminino não será despicienda. Mas nunca a libertação de um povo por imposição produziu bons resultados – como se tem visto, aliás, no Iraque e na Síria. Têm de ser as mulheres árabes a liderar a sua emancipação. Se, quando e como o quiserem.

Laicidade não significa proibir todas as manifestações religiosas. Laicidade significa tolerância e diversidade, valores de que os europeus tanto se orgulham e que os artistas e pensadores franceses se esforçaram por trazer ao mundo. E é isso que os radicais, como o Daesh, querem derrotar, porque é demasiado atrativo e fomenta os movimentos de libertação nos povos que eles querem dominar. Proibir escolhas individuais e culturais que não interferem com a liberdade dos outros é oprimir e discriminar uma religião e uma cultura em detrimento de outras – é ser igual aos extremistas. Não entender isto é não perceber nada de Europa nem de democracia. Quando os europeus, cegos de ódio e intolerância, esquecerem estes valores, que são a base da construção europeia, o radicalismo – islâmico ou qualquer outro – terá vencido. 

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