Viagem (com tudo pago) à ética na política

Viagens pagas a jogos do Euro. Lugares em empresas que têm relações com o governo. Empregos em bancos que mascararam contas de países. Estarão os políticos portugueses a padecer de uma crise de ética?

O secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Fernando Rocha Andrade, tem sido o mais visado durante esta última semana, na polémica das viagens ao Europeu de futebol de 2016. Esta predileção não terá só a ver com o facto de Rocha Andrade ser um dos secretários de Estado com mais visibilidade, nem com a bizarra aventura das novas regras do IMI, que afinal nem são tão novas assim, mas que se transformou num furo medianamente bem explorado pela oposição nesta cálida silly season. Naturalmente, o que compromete o governante é ter sob a sua tutela a Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético (CESE), criada pelo anterior Governo e que vigora desde 2014, mas que a petrolífera se recusa a pagar, estando os 240 milhões de euros acumulados até ao momento em sede de contencioso com o Estado.

Mas a lista de convidados não se fica por aqui. Há mais dois secretários de Estado que foram a França assistir a jogos do Euro a expensas da Galp: Jorge Oliveira, da Internacionalização, e João Vasconcelos, da Indústria. Porém, nesta dança de dar e receber, não convém esquecer o que está para trás, e nem tanto para trás assim. É recente o caso da ex-ministra das Finanças social-democrata Maria Luís Albuquerque que foi convidada (e aceitou) para administradora não executiva da britânica Arrow Global – entidade que esteve envolvida na compra de crédito malparado do Banif –, cargo esse que até implica que se ausente do Parlamento dois a quatro dias por mês, mais as dez reuniões anuais em que terá de estar presente. Mais recente ainda é o novo emprego de Durão Barroso como presidente não executivo e consultor da Goldman Sachs, financeira americana envolvida na crise do subprime norte-americana e posterior contágio à crise das dívidas soberanas europeia e acusada de ter maquilhado as contas da dívida grega para fintar as regras orçamentais europeias. Estes dois exemplos são ainda mais revoltantes do que os do Euro, dada a promiscuidade de interesses e relações implicadas. Contudo, se quisermos continuar no campo das prendas e “atenções”, podemos ainda referir os cabazes de Natal no valor de centenas de euros oferecidos por uma embaixada a altos governantes em 2015.

As prendas, ofertas de emprego e demais cortesias não são uma novidade. É frequente surgirem estes casos na novela politica portuguesa, tal como – não tenhamos ilusões – também surgem noutros países. Os protagonistas vão alternando conforme a igual alternância governo-oposição. Com certeza muitos mais “agrados” existem cuja notícia não chega às parangonas. E, sejamos realistas, não é só no mundo da política que acontecem. Quem nunca recebeu uma oferta, nem que seja uma esferográfica, por parte de uma qualquer entidade com a qual estabelecemos algum tipo de relacionamento, que atire a primeira pedra. É uma manobra amplamente estudada, por exemplo, no campo das vendas: se formos a uma loja ou a uma sessão de vendas e nos oferecerem um café ou um jantar, tornar-se-á mais difícil recusar a compra. A verdade é que ninguém, nem o cidadão anónimo, está acima da ética. A verdade também é que um político, sobretudo um membro do governo, que é responsável por várias decisões que afetam todo um país, tem de ter especial cuidado para não cair no campo do duvidoso. Pela simples razão de que a sua isenção fica comprometida. E quando isso acontece, deixa de ser confiável aos olhos de qualquer cidadão.

Ainda que olhando para os factos à sua devida escala, as viagens ao Euro não podem ser comparadas a esferográficas. E são incompreensíveis, tendo em conta que saem completamente da esfera profissional de cada um dos secretários de Estado, já que nenhum exerce funções ligadas ao desporto. Obviamente que a hipótese de corrupção não está em cima da mesa – não há qualquer indício nesse sentido. Mas é precisamente a essa suspeita que um político nunca deve dar o mínimo espaço. Por isso, independentemente da intenção com que os convites foram oferecidos e aceites, a credibilidade destes governantes está irremediavelmente posta em causa. Sobretudo a de Fernando Rocha Andrade, que não mais terá condições para tratar do dossiê da CESE, mas também a de Jorge Oliveira, que tem a AICEP sob sua alçada, organismo que está atualmente a apreciar uma candidatura da petrolífera aos fundos do Portugal 2020. É por isso que as tentativas de saídas airosas, com o reembolso da despesa à Galp e a transferência dos assuntos da petrolífera para o próprio ministro dos Negócios Estrangeiros, são “sopas depois de almoço”. Mesmo o anúncio da aprovação de um Código de Conduta já para este verão, embora seja uma ideia que vem da altura dos tais cabazes de Natal, é um assumir de culpas. Por tudo isto, julgo que não resta outra saída ao governo senão a demissão dos três secretários de Estado. Passos Coelho sempre foi criticado por segurar os seus ministros, mesmo sob um dilúvio de críticas e polémicas. António Costa não deve cair no mesmo erro e ficar à espera que o mal-estar seja levado pela maré da silly season.

Por outro lado, uns pecam por excesso e outros por defeito. Jorge Miranda explicou tudo de forma muito clara: quando o assunto tem a ver com o próprio, então deve ser o próprio a pagar do seu bolso; se é em representação do Estado, então é o Estado que paga. Ora, Marcelo Rebelo de Sousa, que está longe de ser amador nisto da política, sabe-o muito bem. E não foi para jogar pelo seguro que optou por pagar a sua viagem a Lyon a bordo de um Falcon da Força Aérea portuguesa para assistir à meia-final entre Portugal e País de Gales. O seu jogo não foi de futebol, mas foi uma jogada de populismo, que soube usar para se distanciar de quem viria a estar na berlinda umas semanas mais tarde.

Já se sabe que ninguém é impoluto. Mas são estes “casos” de prendas e de empregos milionários e de legitimidade duvidosa que põem em causa a credibilidade dos políticos, cada vez mais nas ruas da amargura, e que minam a política. Não tenhamos dúvidas, todos precisamos deles, dos políticos e da política. Porque é através deles que se constrói uma sociedade moderna, soberana e democrática, pela qual lutámos. E pela qual ainda se luta em tantos pontos do mundo. Mas a integridade e a ética começaram antes de todas essas lutas e ainda não são uma batalha ganha. E quando se perde, há que saber sair do campo para, pelo menos, não condenar todo o Executivo.

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