Comprometeu-se o património do imposto

A ideia de taxar o património não é de agora. Há anos que se fala nisto como medida de justiça da distribuição fiscal. Do ponto de vista de uma ideologia socialista, faz todo o sentido. E pode até considerar-se uma medida popular para a grande maioria dos eleitores portugueses, a quem tem sido passada o grosso da fatura da crise, paga com os rendimentos do trabalho. A celeuma que enche jornais e noticiários desde há uma semana não se prende com a medida em si, mas sim com o amadorismo com que Governo e Bloco de Esquerda abordaram a situação e com a forma magistral com que a direita explorou a deixa.

Um imposto sobre o património vem dar resposta às situações amplamente conhecidas e tantas vezes brandidas no nosso quotidiano de cidadãos que declaram baixos rendimentos, exibindo porém casas de luxo e automóveis topo de gama e muitas vezes até beneficiando de prestações sociais. Todos estamos lembrados de Manuel Damásio, ex-presidente do Benfica e empresário (lá está) do imobiliário de luxo, que declarava às Finanças o salário mínimo, tinha mais de 5000 contos de despesa scom a educação dos filhos e estacionava o helicóptero no jardim da sua mansão. Claro que manobras ilegítimas deste tipo travam-se idealmente através de um efetivo combate à evasão fiscal e de uma lei contra o enriquecimento ilícito. Mas também sabemos que nunca faltará quem arranje forma de escapar ao fisco (e até mesmo ao eventual imposto sobre o património), porque nenhum sistema é perfeito. E, acima de tudo, falta vontade política para impedir estas fugas, caso contrário haveria dirigentes escandalizados com as notícias sobre grandes esquemas de offshores que têm vindo a público, como os recentes papeis do Panamá e Bahamas Leaks – mas não, o código de conduta tem sido não levantar espuma e sobretudo não investigar e não fazer leis que acabem com esta vergonhosa fuga de capitais, que tanto prejudica países como Portugal, mais uma vez avolumando a fatura fiscal para quem vive do trabalho e não tem rendimentos suficientes para colocar num paraíso fiscal.

Muitos têm sido os argumentos levantados contra o imposto sobre o património. O mais populista é a falácia de que penaliza a classe média. Por muito subjetiva que seja a definição de classe média (que em Portugal está ao nível da classe baixa de muitos países), ninguém vê uma família de classe média portuguesa a adquirir um imóvel acima de um milhão de euros para segunda habitação. Outro argumento prende-se com o risco de afastar investimento. Ora o investimento produtivo, suscetível de gerar riqueza para o país, encontra-se nas empresas e na tecnologia, não na compra e venda de imóveis que não gera coisa nenhuma a não ser lucros para quem se dedica a este negócio. É precisamente a compra de casas de valor superior a um milhão de euros que tem estado na base da concessão de vistos gold (muitos deles fraudulentos, mas isso é outra história) a cidadãos estrangeiros que assim obtêm nacionalidade portuguesa trazendo pouca ou nenhuma mais-valia ao nosso país. E se compararmos com dados da OCDE, a carga fiscal sobre o património em Portugal fica aquém da média, quando noutros países a tendência é para aumentar essa parcela. Seria melhor deixar concluir esta medida e esperar para conhecer os detalhes, os montantes, a quem se aplica e as exceções, em vez de pintar um quadro tenebroso baseado em especulações. Sejam oito, oito mil ou oito milhões os afetados pelo novo imposto, quando se sabe que Portugal foi o país da OCDE que mais aumentou a carga fiscal para os baixos salários, esta é uma medida de justiça. A receita que gerará pode não ser volumosa, mas quando já restam poucas alternativas é lícito procurar fonte de receita em quem menos foi fustigado pela austeridade. Melhor ainda seria taxar também outros bens de luxo, como automóveis topo de gama, barcos e veículos aéreos.

Numa oposição que se tem destacado até este verão precisamente por não se destacar e por fazer pouca oposição, foi encontrada uma oportunidade. Não tanto nos argumentos esgrimidos contra o imposto, mas mais na forma como foi anunciado. PSD e CDS, incapazes de se afirmar como alternativa e de se reinventarem na resposta à crise económica e financeira, depois de terem submetido o país à maior austeridade de sempre, apostam mais uma vez em fomentar a clivagem da maioria de esquerda. Não é uma estratégia desprezável, já que todos esperam e pré-anunciam a quebra da geringonça a qualquer momento desde o seu início. Mas aqui, a maioria pôs-se a jeito: o BE porque se antecipou no anúncio e o Governo porque o permitiu. Mais ainda porque vieram lançar uma ideia ainda em discussão, abrindo caminho a todo o tipo de especulações, que entretanto vão desgastando a medida em si. O episódio pode ter duas interpretações: um erro estratégico assente no entusiasmo infantil do BE e na habitual dureza e frontalidade de Mariana Mortágua somando-se à ineficaz capacidade de comunicação do Governo, sobretudo do ministro das Finanças; ou uma intenção estratégica do BE de condicionar o PS a uma medida, simultaneamente chamando a si o protagonismo. Seja como for, um erro na forma como o assunto foi gerido, que prejudica uma potencial boa medida.

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