A semente de Trump

Aquilo a que se tem assistido nas eleições norte-americanas, para além do habitual show megalómano onde bandeirinhas e os beijos aos cônjuges atestam as aptidões dos candidatos, é deveras preocupante. Já não o digo pela possibilidade de Donald Trump vencer, que ultimamente parece cada vez mais remota (embora nos EUA as sondagens sejam de muito limitado valor), mas tão somente pelo facto de ser candidato e de haver eleitores que depositam nele o seu voto (e que são em número muito significativo). E se Trump perder, será que Trump acaba?

As eleições norte-americanas são mais do que as eleições dos Estados Unidos da América. A posição dos EUA no mundo, tanto em termos comerciais como políticos, faz deste país o mais universal de todos, quer queiramos quer não. Basta ver que foi lá que começou a crise do subprime, que arrastou a Europa e à qual o velho continente permanece amarrada (por uma boa dose de inépcia própria). E convém nunca esquecer o papel central dos EUA na II Guerra Mundial e nos capítulos que se lhe seguiram, como a fundação da ONU e seu funcionamento até aos dias de hoje, passando pela guerra fria e pelos vários conflitos nos territórios árabes, que nos trazem à atualíssima guerra da Síria, onde paira o espectro de uma terceira guerra mundial alimentado pelo reacender de uma guerra fria.  Por tudo isto, se ter uma PàF ou uma Geringonça em Portugal não importa à maioria dos países, já quem se senta na Casa Branca desperta todos os interesses.

A mobilização que estas eleições norte-americanas têm gerado não tem a ver com a qualidade dos candidatos. Na verdade, com uma candidata tão mal-amada e geradora de antipatia e desconfiança como Hillary Clinton, só o facto de o adversário ser pior a faz estar ligeiramente à frente nas sondagens. Portanto, debate na maior potência mundial gira em torno de escolher o menos mau, o que não é de todo animador.

A candidatura de Donald Trump nasce da polarização e revolta de uma sociedade americana que se sente desiludida e injustiçada por um sistema que não trouxe a prometida prosperidade e que tem medo que o modo de vida que ainda assim conseguiu conquistar lhe seja roubado pelo tal sistema. A estratégia do medo e da desinformação fomentadas por Trump cria o caldo ótimo para uma crise de valores humanitários, comunitários e filosóficos como poucas vezes se tem visto. Algo que, aliás, atinge também a Europa de forma disseminada, mas com a compartimentalização inerente à geografia. Só esta conjugação de fatores explica o facto de haver quem aceite as ideias de Trump sobre imigração, discriminação racial, tortura, banalização do assédio sexual e a incongruência de ser contra o establishment e o politicamente correto enquanto se gaba a habilidade de fugir aos impostos e de não pagar o que é devido a trabalhadores e fornecedores. Ou então acreditamos que tudo não passou de uma manobra do magnata para aumenta a sua popularidade e o seu império, quase arriscando ser mesmo eleito presidente dos Estados Unidos sem nunca ter tido a intenção – uma hipótese que não é descabida de todo, considerando a auto-imagem de poder absoluto e intocável do candidato republicano.

Trump não é, na verdade, republicano. O que se pode perceber pelas sucessivas rejeições por parte de personalidades do partido. Mas engana-se perigosamente quem o julga apenas um multimilionário excêntrico, egocêntrico e reacionário que compra o direito de se fazer ouvir com os seus próprios milhões. Trump existe porque a sociedade quer. As barbaridades que defende espelham aquilo que os seus apoiantes pensam. E quando uma pessoa destas está perto de ganhar as eleições, percebemos que não se trata apenas de um delírio de uma minoria extremista. No entanto, o problema não vai desaparecer com a derrota eleitoral de Donald. A raiz do medo e da crise de valores permanecerá em quem o apoia. E é esse o grande perigo para o mundo: existir quem pense o que Trump não tem pejo de dizer. E depois do sucesso da mobilização durante a campanha, não se pense que a derrota do candidato secará a semente.

Donald Trump cometeu neste terceiro debate o maior erro da sua candidatura. Muito maior do que achincalhar um soldado muçulmano morto pela pátria e um histórico republicano prisioneiro de guerra ou do que gabar-se num vídeo da humilhação e intimidação que impõe às mulheres. Para tudo isto os seus eleitores conseguiram encontrar forma de o justificar e perdoar. O que o povo americano dificilmente lhe perdoará é o ataque à democracia que Trump desferiu ao anunciar que poderá não aceitar os resultados das eleições. Com isto, o magnata pôs em causa o sistema democrático norte-americano, o que é um rude golpe num país que reclama ser o berço da democracia. Uma democracia duvidosa, claro está, quando cada cidadão não vale pelo seu voto mas sim pelo que o seu estado vota e onde a corrida para Presidente é decidida por 270 votos eleitorais. Ainda assim, o cidadão norte-americano tem orgulho no seu sistema democrático e nos seus fundadores e esta é a declaração politicamente incorreta que não perdoará ao candidato republicano. Mas não é de esperar de Trump uma revolução ou uma guerra civil se perder as eleições, como é apanágio noutros países. Contudo, suspeito que Trump, dono de tudo quanto quiser – o que inclui os media – vai continuar a fazer-se ouvir e a minar a sociedade norte-americana. E a alimentar o medo, a revolta e a crise de valores. Trumps vão e vêm, mas o que é preciso entender é a semente que os faz nascer e perdurar.

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