Ensaio sobre as novas relações laborais

A forma como trabalhamos e como consumimos está mesmo a mudar. Nesta era da globalização e da virtualidade, cada vez mais se prestam serviços. As figuras do empregador e do trabalhador esfumam-se em hologramas intangíveis. E com eles somem-se as responsabilidades. É moderno e fruto do avançar dos tempos, dizem. E isso não é necessariamente mau. Mas também não é necessariamente bom. A questão é: queremos tal mudança?

A discussão comparativa entre o mundo laboral dos nossos pais e o nosso já é longa e já a trouxe ao Espaço Liberdade. Esqueça-se o conceito de emprego sólido: não há ninguém hoje em dia que sinta que o seu posto de trabalho está seguro, mesmo que tenha um contrato de trabalho sem termo. As formas de pressão são muitas e capazes da maior subtileza. A palavra precário foi-se encaixando nos nossos vocabulários de modo tão natural que quase se tornou sinónimo de trabalho. Recibos verdes, bolsas e estágios – tudo serve para trabalhar. Só os contratos parecem já não servir.

Mas surge também uma nova forma de trabalhar e produzir, que é também uma nova forma de viver: a prestação de serviços e a intermediação. O vínculo entre empregador e trabalhador é cada vez mais ténue, ou mesmo inexistente. As empresas já não contratam pessoas, mas sim outras empresas. Para além do fenómeno das empresas de cedência de recursos humanos, há trabalhadores que se transformam em recibos verdes ou em empresas, porque essa é a única modalidade em que lhes é oferecido trabalho. E o Estado e os serviços públicos são os primeiros a fazê-lo. Assim se perdem rendimentos, que escorregam diretamente para o bolso de intermediários. Para o trabalhador, que para todos os efeitos exerce a sua atividade nas instalações da empresa “contratante”, com um horário definido e integrado na hierarquia, são transferidas todas as obrigações: contribuições fiscais, formação, contratualização de seguros, provimento em caso de doença. Para o “contratante” fica a obrigação de lucrar.

O recente fenómeno da chamada economia colaborativa, de que são exemplos famosos a Uber e a Airbnb, são um aprofundar desta prestação de serviços e intermediação. A Uber não é uma empresa de transportes, mas sim uma plataforma entre uma empresa que transporta (o motorista) e quem quer ser transportado. Rivalidades à parte, não vejo que mais-valia traz comparativamente a um taxista que ofereça o seu serviço através de uma aplicação – que também os há. Parece haver uma invenção de um serviço desnecessário. Esta intermediação acrescenta, pois, um ator supérfluo na cadeia de negócio, cujas responsabilidades pelo transporte, pelo motorista e pelo cliente são próximas de nulas, e torna mais caro o serviço para o cliente e mais magro o rendimento do trabalhador.

Há quem diga que é a evolução dos tempos, fruto da globalização e do avanço tecnológico. Mas não creio. A tecnologia veio para facilitar a vida das pessoas, não para transformar empresas numa espécie de ditadores da economia e do trabalho. O esvaziamento das relações laborais resulta da crise de valores que é transversal a todos os setores da sociedade e a todo o mundo. Um mundo que se interessa pelo lucro imediato e cuja economia assenta nos mercados em que as coisas têm um valor presumido e não real. Um mundo em que os cidadãos querem ser servidos, independentemente de quem seja atropelado pelo caminho. Um mundo de desresponsabilização, de relações superficiais, que transforma pessoas em números e em empresas e lhes nega o direito a ser pessoas.

Poderá ser vantajoso para algumas economias em recuperação flexibilizar as relações laborais. Poderá ser moderno e empreendedor sermos empresas ou aplicações. Mas se for para deixarmos de ser pessoas, talvez não seja assim tão bom.

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