UE e Merkel, façam favor de tomar nota

Foi espantoso o ativismo com que o porta-voz da Comissão Europeia (CE), Margaritis Schinas, anunciou que a Comissão tomava nota do resultado do referendo húngaro às quotas de recolocação de refugiados. Igualmente espantosa foi a conduta da União Europeia (UE), comandada pela sra. Merkel, no processo de escolha do novo secretário-geral das Organização das Nações Unidas (ONU). Numa altura em que todo o mundo aclama a nomeação de António Guterres pelas suas qualidades de diplomata e humanista, tão necessárias a um mundo que atravessa a maior crise humanitária, económica e de valores dos últimos 50 anos, percebe-se, mais uma vez, que a UE se perdeu no anacronismo do seu próprio deslumbramento.

Se a ONU tem sido acusada de ter um papel pouco efetivo nas grandes questões mundiais e de ceder às pressões das potências hegemónicas que fazem dela precisamente um trampolim de livre exercício dos seus interesses, não é na UE que encontramos melhor cenário. A UE vive ensimesmada, de costas voltadas para a realidade e para os seus cidadãos, fechada sobre problemas económicos internos que não consegue solucionar. Esta obstinação rege o dia-a-dia da CE, que se resume a punir os prevaricadores que não cumprem o comprovadamente falhado Tratado Orçamental e a inventar desesperadamente mais regras e obrigações constrangedoras. Só esta confusão de identidade permite compreender o incompreensível: que a Europa se empenhe em negociar as imposições do Brexit, ao mesmo tempo que aceita sem mais do que apenas “tomar nota” a recusa de um estado-membro em respeitar valores humanitários. A recusa de algo que já foi tão fundamental à Europa dos direitos humanos deveria significar a expulsão da Hungria de Viktor Orbán ou, pelo menos, e aqui sim, a imposição de sanções.

O autismo de Bruxelas torna difícil a gestão de qualquer crise, nomeadamente a dos refugiados. E reflete-se também nas relações com o resto do mundo. A Alemanha, que comanda indiscutivelmente os destinos da UE, sempre respondeu de forma desastrosa quando foi chamada a assumir-se como uma das líderes mundiais. Mesmo dentro da UE é incapaz de assumir plenamente esse papel, auto-relegando-se para uma liderança económica. Reconhecendo essa fraqueza e a humilhação a que está votada desde a fundação da ONU – honestamente, já fora de prazo, 71 anos após a II Guerra Mundial – Angela Merkel tentou pôr a palavra alemã no centro de decisão da ONU, ao patrocinar a candidatura inusitada de Kristalina Georgieva. Mais uma vez, falhou. E arrastou consigo a CE.

Merkel e Jüncker cometeram um erro grosseiro. Sabemos que nestes processos há sempre manobras de bastidores, e também as deve ter havido no caso de Guterres. Mas a forma obscura como Merkel conduziu o processo, contornando as etapas já cumpridas pelos restantes candidatos, procurando condicionar os membros do Conselho de Segurança e rodeando-se de apoiantes como o já aqui referido Viktor Orbán, contrasta amplamente com a sensibilização serena e discreta baseada no mérito do candidato levada a cabo pela delegação portuguesa. Uma lição de diplomacia do periférico Portugal para o gigante alemão. A demonstração de superioridade continua mesmo depois da aclamação de Guterres, com a missão portuguesa, pela voz do primeiro-ministro, a recusar fazer declarações para não “fragilizar a Comissão”. Mais uma pequena bofetada de luva branca, que mostra que um país pode não ter um défice invejável ou um superavit majestoso, mas tem um grande povo e com excelentes capacidades. Contudo, e como a mesquinhez e inferioridade estão sempre espreitar as oportunidades, não se prevêem sem obstáculos os próximos caminhos de Portugal na CE. A começar já pela suspensão de fundos estruturais e pelo procedimento por défice excessivo.

Georgieva saiu derrotada, com a humilhação acrescida de ter ficado três lugares abaixo da sua compatriota preterida, Irina Bokova. Independentemente do mérito que possa ter, sai indubitavelmente maculada, por ter aceitado servir para este jogo. Mas a principal derrota é de Angela Merkel. Mais uma vez, a Alemanha tenta dominar não pelo seu mérito natural, que até pode ter, mas pela imposição da sua vontade, à qual quer submeter o resto do mundo. Felizmente, os membros do Conselho de Segurança souberam surpreendentemente ler o momento e perceber o que Merkel e a CE não percebem: que a credibilidade, a justiça e o humanismo se sobrepõem a jogos sujos. Caso contrário, a confiança na ONU teria saído fatalmente abalada.

Se a vida não estava fácil para Angela Merkel, contestada internamente devido à sua posição na crise dos refugiados (à qual é incapaz, apesar disso, de dar uma resposta eficaz) e externamente pelos países do sul da Europa, e num momento em que o maior banco alemão treme, receio que esta tenha sido uma das machadadas finais. Um golpe também (mais um) nesta Europa cada vez mais afastada dos seus cidadãos. Se os dirigentes europeus não entenderem a tempo que é preciso líderes, é preciso reabilitar valores e é preciso posicionar a Europa nos centros de decisão, a construção europeia tornar-se-á obsoleta. Será o elefante branco que ninguém consegue arrastar. Espero que Merkel e a UE tenham tomado nota desta lição.

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