Necessitam-se cantores de intervenção (outra vez)

A banda norte-americana Green Day surpreendeu o público com uma versão diferente de uma das suas mais recentes canções “Bang Bang”, esta segunda-feira no American Music Awards. A banda punk protestava contra Trump, o racismo e o fascismo, introduzindo na música as palavras “No Trump, no KKK, no fascist USA”. Não sei o que significou para as pessoas presentes no Microsoft Theater que assistiam à cerimónia ao vivo. A mim atingiu-me como um baque. Os cantores e bandas de intervenção estão a regressar. E isso quer dizer que nos devemos preocupar.

Por todo o mundo houve outrora cantores e cantautores de intervenção. Pessoas a quem a arte empresta o talento de agitar consciências com a graça de uma canção. Os seus contributos foram enormes para a construção das sociedades que nos trazem aos dias de hoje, ajudando a derrubar ditaduras, a lutar por direitos ou, simplesmente, a abrir os olhos – o que, num mundo isolacionista e tão pouco humanista para onde parecemos caminhar, já é um grande trabalho. Não me permitindo a idade extensas resenhas históricas em matéria de testemunho vivo (o que não é necessariamente desfavorável à minha pessoa), recuo apenas até à segunda metade do riquíssimo século XX para invocar uma época em que a expressão dos cantores de intervenção foi significativa. Recorde-se que esses foram tempos de violentas ditaduras, sobretudo na Europa e nas Américas, que então conheceram o seu fim. Portugal foi pródigo neste campo, com vários e grandes nomes. O maior de todos foi, sem dúvida, Zeca Afonso, que não só emprestou a sua voz à resistência antifascista como à própria Revolução, ainda hoje celebrada na “Grândola Vila Morena”. Mas muitos mais o ladearam: Luís Cília, Adriano Correia de Oliveira, José Fanha, Manuel Freire e os tão presentes Sérgio Godinho e Vitorino (perdoem-me os que omito as terríveis faltas da tenra idade…). Mesmo no plano internacional, temos o recém-nomeado Prémio Nobel da Literatura Bob Dylan (polémicas à parte), Joan Baez, Janis Joplin. Ou no lusófono Brasil: Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso. Muitos deles já idos deste mundo, mas deixando uma obra maior do que a sua existência, e outros que ainda hoje têm para ensinar às gerações mais novas a importância das artes na luta política e social.

A partir da década de 80, e sobretudo da década de 90, alturas de maior e progressiva estabilidade política, os cantores de intervenção quase se eclipsaram. As transformações no Ocidente que ocorreram nesses anos foram no sentido da pacificação, com a resolução de muitas ditaduras, substituídas por democracias, a queda do muro de Berlim, o progressivo apaziguamento da Guerra Fria. Os conflitos continuaram pontualmente, mas em locais distantes dos países ocidentais e, portanto, menos visíveis. Nesses anos e na primeira década deste terceiro milénio, pautados por maior igualdade, mais liberdade e maior prosperidade económica, havia menos razões para reivindicar e protestar.  E assim o povo adormeceu.

Mas eis que começam a surgir novamente os cantores de intervenção. E isso não é uma corrente artística. É uma necessidade. Tal como foram tão necessários há mais de meio século atrás, começam a ser agora novamente. Considero que em Portugal a primeira canção de intervenção desta era foi “Parva Que Sou”, da autoria dos Deolinda. Sem edição em álbum, tocada apenas ao vivo nos Coliseus de Lisboa e Porto, talvez tenha passado despercebida a muita gente. Porém, pode dizer-se que foi o mote que fez acordar uma geração a quem muito tinha sido prometido, mas que viu a prosperidade ser-lhe negada e recuou a condições de vida inferiores às dos seus pais. E impulsionada pela força de uma canção, esta “Geração à Rasca” protagonizou uma das maiores manifestações da segunda década do milénio em Portugal, em Março de 2011, e posteriormente uma iniciativa legislativa de cidadãos para combate ao trabalho precário.

Ainda mergulhados nesta perigosa modorra, vamos acordando para perceber que o mundo se foi transformando. Arrasado por uma enorme crise financeira e económica, ignorando a crise dos refugiados e as guerras no Médio Oriente, atacado por um terrorismo de alvos indiscriminados, o mundo cozinha o caldo perfeito para os nacionalismos extremistas. Vamos assistindo à re-ascensão da extrema-direita, à eleição do inimaginável Trump, ao crescimento dos populismos, à perda de valores como a solidariedade e o humanismo, à xenofobia declarada, à normalização da precariedade das condições de vida e de trabalho. Estamos a ver o que já se viu e que o mundo jurou jamais repetir – mas será que estamos a perceber isso? Precisamos outra vez de cantores de intervenção. E isso é assustador.

Etiquetas: , , , , , ,