O PCP ainda faz falta

O Partido Comunista Português reuniu-se para o seu XX Congresso. Este foi, sem dúvida, o congresso comunista mais importante dos últimos anos, pois acontece numa altura em que o partido está totalmente comprometido com o governo do seu arqui-adversário, o Partido Socialista, e lado a lado com o Bloco de Esquerda, o partido que ameaça fazer-lhe sombra desde a sua génese. Este era o congresso do tudo ou nada: onde o líder poderia sair reforçado ou esmagado por força do acordo com o governo PS, onde se esperava a continuidade de Jerónimo de Sousa como secretário-geral ou a preparação para a transição, onde se tinha de escolher entre a renovação e a imutabilidade das estruturas do partido como resposta aos desafios recentes.

Antes de mais, uma nota para destacar a excelente organização do Congresso. Nada mais me ocorre dizer, a não ser que tal só é possível no Partido Comunista Português. Tudo, desde o escrupuloso cumprimento dos horários, à organização da sala por voluntários do partido e até à extraordinária disponibilidade de alojamento em casa de camaradas, conhecidos ou desconhecidos, é algo muito próprio do PCP. Marcas da sobrevivência à perseguição e clandestinidade de outros tempos.

A histórica ortodoxia do PCP leva-nos a entender o quanto os comunistas arriscaram ao engrenarem na Geringonça. O risco foi corrido sobretudo por Jerónimo de Sousa, que teve algum trabalho de convencimento do Comité Central. Por outro lado, o PCP dos dias de hoje está longe de ser visto como um partido de assalto ao poder, sendo-lhe reconhecida a confiança de quem tem uma base de apoio social sólida e uma doutrina e percurso bem conhecidos. Ao contrário dos partidos comunistas do resto da Europa, o português resistiu às ondas reformistas que os descaracterizaram e que acabaram com os seus congéneres europeus, mas soube também enquadrar-se, com mais ou menos argúcia, nas exigências da realidade das últimas décadas. O PCP deve a sua sobrevivência ao papel histórico na democracia portuguesa, à sua solidez e ao seu eleitorado de operários, funcionários públicos e sindicalistas que partilham com a história do partido a sua história pessoal de resistência à ditadura.

O líder Jerónimo de Sousa e o compromisso que trouxe ao partido de viabilizar o Governo PS saem reforçados neste XX Congresso. Apesar da rigidez de princípios, há que reconhecer ao PCP algum pragmatismo, que já ficara imortalizado no apelo do líder histórico Álvaro Cunhal pelo voto em Mário Soares nas eleições presidenciais de 1986, a fim de evitar a vitória de Freitas do Amaral. O acordo com o PS será um sapo mais fácil de engolir e talvez até de digestão não muito difícil, a julgar pelas muitas vozes de militantes comunistas, à semelhança de muitos cidadãos portugueses em geral, que vêem com bons olhos os acordos entre os partidos da Geringonça. Após mais de 40 anos de democracia, o PCP foi finalmente capaz de engolir o que quer que fosse para viabilizar um governo mais à esquerda e impedir um segundo governo PSD/CDS – algo que os portugueses há muito ansiavam. Mesmo que tenham de fazer cedências e consigam menos do que pretendiam. Por isso, acho pouco provável que o PCP puxe o tapete debaixo dos pés de Costa, porque os custos para o partido seriam demasiado grandes. Já do PS, com o respaldo de uma possível maioria absoluta, não tenho tanta certeza.

As críticas de “domesticação” pelo PS ou de reboque dos socialistas pelo PCP são sempre uma boa estratégia da direita, que tenta corroer a Geringonça no local onde produz mais danos: o seu interior. Contudo, esta estratégia subestima a verticalidade do PCP e os acordos à esquerda. A mestria destes acordos está precisamente no facto de serem bilaterais. Se por um lado isso traduz uma fraca coesão, por outro torna possível a sua durabilidade na medida das matérias em que há convergência. Sendo assim, as divergências e as diferentes ideologias são respeitadas e nem PS nem os restantes partidos da esquerda ficam amordaçados a acordos impossíveis de cumprir, o que teria pesados custos para a Geringonça e para os diferentes partidos. É verdade que esta espécie de coligação acabou por resultar numa subida do PS nas sondagens e numa descida do Bloco e PCP. Mas uma sondagem nesta altura, a tanta distância das eleições, dificilmente traduz as intenções de voto efetivas. Além disso, onde estariam agora PCP e Bloco de Esquerda se tivessem recusado viabilizar o Governo de António Costa? Provavelmente desacreditados, considerados irresponsáveis e relegados para últimas forças partidárias, inclusive abaixo do CDS. Não partilho da ideia de que os acordos estão esgotados, estando já cumpridas a maioria das medidas neles inscritas. Há ainda muitas conquistas à esquerda para fazer, que não se resumem à reposição de rendimentos.

Uma dessas matérias, que será o osso mais duro de roer para a Geringonça foi colocada definitivamente na agenda neste Congresso: a permanência na União Europeia (UE) e a renegociação da dívida. O assunto não é de agora: tanto comunistas como bloquistas vêm insistindo nesta temática ainda antes do início da presente legislatura. Mas neste fim de semana saltou para cima da mesa de uma forma que muito dificilmente Costa poderá continuar a empurrar com a barriga. Parece já haver algumas movimentações no seio do Governo: ainda há pouco mais de uma semana, Mário Centeno veio defender a necessidade de negociar um perdão parcial da dívida grega, numa clara tentativa de preparação para mudança de política de dívida no seio da UE e para posicionar Portugal no caminho da renegociação da sua própria dívida. É possível que, depois do congresso comunista, PS, BE, PCP e PEV tenham mesmo de se sentar à mesa a discutir este assunto.

É indiscutível que o PCP não tem já o peso político que teve outrora. Muitos dizem que é anacrónico, obsoleto, que não soube renovar-se. Mas a sua sobrevivência até aos dias de hoje diz-nos que se tem renovado na medida certa – nem muito nem pouco, apenas o suficiente para se manter fiel a si próprio e continuar a ter o seu lugar na política e na sociedade portuguesas. O PCP ainda faz falta. Ainda é o partido dos trabalhadores e trabalhadores sempre existirão. Suspeito de que, nos tempos de incerteza que vivemos, em que nos aproximamos perigosamente dos extremismos e ultranacionalismos, os partidos comunistas poderão vir a ter uma grande palavra a dizer. E o Partido Comunista Português será talvez o que estará em melhores condições de o fazer.

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