A revolução de Trump

Se há uma semana o Espaço Liberdade quis manter-se sintonizado no otimismo e inspirar-se n’O fôlego de Obama, esta semana é inevitável descer à realidade e olhar para os dias negros que Trump nos promete. Depois da teatralidade enjoativa e boçal das cerimónias da tomada de posse, o mundo continuou a assistir em direto à primeira semana de governação do improvável presidente norte-americano. Cedo se desfez a pouca esperança de quem alvitrava um governante efetivamente mais moderado do que o candidato. Honra lhe seja feita: Trump Presidente é o que prometeu ser.

A primeira semana da administração Trump foi ainda mais frenética do que os primeiros tempos da Geringonça portuguesa. Em apenas uma semana, o novo Presidente dos EUA revogou o Obamacare, oficializou a promessa da construção de um muro na fronteira com o México, denunciou os acordos comerciais transpacífico (TPP) e com os vizinhos americanos (NAFTA) e prometeu aos empresários o corte de impostos e a eliminação de 75% das normas reguladoras. Prosseguindo a anunciada política discriminatória anti-imigração e antiterrorismo, congelou a emissão de vistos para cidadãos oriundos de sete países islâmicos – incluindo a Líbia e o Iraque, países em relação aos quais os Estados Unidos têm uma responsabilidade histórica pela guerra e instabilidade que criaram, o que está em grande parte na génese da atual vaga de refugiados daí provenientes.

Trump inaugurou a sua administração através de uma governação por decreto presidencial, cuja jurisdição é limitada, pelo que muitas destas medidas necessitam de aprovação do Congresso para uso de verbas estatais, nomeadamente a construção do muro fronteiriço. Recorde-se que Barack Obama viu várias das suas propostas esbarrarem no Congresso, sobretudo numa altura em que a maioria nesta câmara lhe era adversa. Já acreditei que a máquina política reguladora dos EUA fosse capaz de introduzir algumas garantias de que nem todas as loucuras e atropelos aos direitos internacionais e humanos do Presidente passariam. No entanto, os sinais institucionais que nos chegam do transatlântico não são tranquilizadores. Muitos congressistas conservadores têm manifestado um seguidismo trumpista mesmo nas ideias mais extremistas. Acredito que a revolução que Trump se propõe operar não vá acontecer num relâmpago como o próprio desejaria, pois será emperrada pela burocracia das leis institucionais. Mas não tenho dúvidas de que o Congresso aprovará, com mais ou menos modificações, a maioria destas e de outras medidas, incluindo as que mais arrepiam o resto do mundo. Não é difícil prever, por exemplo, que, num país fortemente a favor da industrialização, com elevada dependência energética e dispondo de grandes reservas de combustíveis fósseis, as preocupações e compromissos ambientais, aos quais os norte-americanos sempre foram extremamente resistentes, sejam reduzidos a nada.

A revolução de Trump é isolacionista, xenófoba e protecionista, como o próprio tinha anunciado durante a campanha. Mas é muito mais do que isso. Podemos estar perante uma revolução de regime nos EUA, com o aval tácito do povo norte-americano: uma transição de democracia para um totalitarismo extremamente duro e sem qualquer respeito pelos direitos fundamentais, liderado por uma personalidade com uma visão distópica do mundo e com uma noção muito particular da verdade. Nas últimas semanas, houve dois acontecimentos sinalizadores desse perigo.

O primeiro ocorreu ainda antes da tomada de posse, numa conferência de imprensa em que Donald Trump se recusou a responder a perguntas de jornalistas da CNN e manifestou que passará a escolher que jornalistas terão acesso à Casa Branca. Um episódio que faz antever uma relação com os media muito condicionada pela forma como estes se posicionarem em relação à administração Trump, sendo gradualmente banidos os que tracem um retrato menos favorável. É geralmente por aqui, pela liberdade de expressão e de informação, que as democracias começam a ser atacadas. O segundo acontecimento foi a defesa da reintrodução da tortura como forma de combater o terrorismo. Não sejamos ingénuos – a tortura não ficou esquecida há vários séculos atrás. Mas defendê-la às claras e sem qualquer contestação é abrir a porta a todo o tipo de atrocidades. Vindas de Donald Trump, ninguém estranha tais posições, e o problema reside precisamente aí. É agora mais do que claro que o magnata foi subestimado desde a campanha para as primárias e que os seus opositores e a sociedade em geral não o combateram adequadamente por desvalorizarem as suas excentricidades. Excentricidades essas que se vão entranhando e acabam por ser aceites como naturais. Quando perdemos a capacidade de indignação ativa e efetiva, o mundo vai-se transformando sem nos apercebermos, até que acordamos numa realidade que não sonhámos e não entendemos. Já provámos disto demasiadas vezes.


É necessário, mais do que nunca, um contrapeso que recentre o extremismo de Donald Trump. Esse contrapeso pode e deve ser a Europa. Mas para isso os líderes europeus têm de abandonar a atitude expectante e complacente e fazer ver ao Presidente norte-americano que não tem carta branca para tudo. Isso pode passar por reduzir fluxos comerciais com aquele país e até – porque não? – impor sanções se houver incumprimento de tratados internacionais. 

Pensando nos vários regimes totalitários que o mundo teve a infelicidade de conhecer, sobretudo ao longo do último século, não é difícil encontrar na imagem de Donald Trump o retrato de um ditador em ascensão. A aura de endeusamento que o próprio cultiva, o discurso pobre de que tudo na América é “amazing” e “fantastic”, a forma obstinada e intempestiva com que começou a pôr a casa em ordem e até a os momentos de assinatura dos decretos – rodeado de colaboradores com postura subserviente, a quem estende a caneta num gesto imperativo, sem um olhar nem uma palavra – são reflexos disso mesmo. Seria irónico, se não fosse assustador, que o povo que mais apregoa a liberdade e a democracia tenha votado democraticamente num Presidente que pode abalar a democracia no país e em todo o mundo.

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