O fôlego de Obama

O mundo despediu-se de Barack Obama e Obama despediu-se da Casa Branca. Nada de novo, tal já aconteceu 44 vezes na história dos Estados Unidos da América. Mas desta vez foi especial, devido à singularidade de quem partiu e de quem lhe sucedeu. Num momento em que o mundo olha com expectativa e receio para o novo ocupante da Sala Oval e revê ainda as cerimónias da tomada de posse, bem como as imagens das manifestações anti-Trump que deram as boas-vindas ao novo Presidente, o Espaço Liberdade prefere prolongar o otimismo e olhar para o legado de oito anos de Barack Obama. Porque teremos muito tempo para pessimismos…

Começou por ser o primeiro presidente afro-americano dos Estados Unidos. E isso não é pouco. Significa duas coisas: a primeira é que Obama é de facto uma pessoa com capacidades acima da média para conseguir chegar ao mais alto cargo num país onde apesar (e talvez por causa) da multiplicidade cultural, as divisões raciais estão bem instaladas e assentam em profundas raízes históricas. O segundo significado é o sentimento de esperança e de igualdade de que qualquer pessoa, independentemente da cor da pele, pode contar e triunfar na sociedade. Barack chegou promissor à Casa Branca e com aura de salvador. Mas a política, sobretudo numa democracia, nunca é one man show. Os mais realistas sempre alertaram para os riscos de expectativas demasiado altas se transformarem em desilusão. Temo que o mesmo possa vir a acontecer com António Guterres à frente das Nações Unidas. Na verdade, tendo um Congresso de maioria republicana, Barack viu-se obrigado a governar muitas vezes por decreto presidencial. Uma boa parte do eleitorado norte-americano que votou em Obama acabou mesmo desiludida com esta administração e ajudou agora a construir a vitória de Trump.

Obama foi uma lufada de ar fresco num país vergado por uma enorme crise económica e suportando o peso de ser uma superpotência mundial. No plano interno, ao contrário de outros líderes mundiais, reabilitou a economia americana depois de a ver afundar e arrastar a economia mundial. Mas o legado mais importante foi a revolução no sistema de saúde, com a implementação do Affordable Care Act – uma medida tão emblemática que ficou conhecida como Obamacare – que garante que ninguém fica sem cuidados de saúde mesmo não podendo pagar um seguro. Obama enfrentou uma feroz oposição dentro do seu país para o conseguir e o recente empenho de Trump e dos republicanos em desmantelá-lo logo à entrada da tomada de posse do novo presidente mostra que os americanos ainda não estão preparados para ceder no seu desmesurado capitalismo em prol da igualdade e do bem comum.

No plano externo, a diplomacia norte-americana conheceu tempos de descrispação e de reatar de relações. Neste campo, contou com a grande habilidade do secretário de Estado John Kerry. Há quem diga que a Europa foi desprezada por Barack – não foi com certeza a prioridade do Presidente, mas as relações foram afáveis e concertadas. As velhas feridas entre EUA e Japão abertas pelo ataque a Pearl Harbor e pelas bombas atómicas sobre Hiroshima e Nagasaki poderão não estar totalmente saradas – a gravidade dos acontecimentos torna-o extremamente difícil – mas foi tomado o gesto bilateral para a sua pacificação. Foi sob a administração Obama que foi ratificado o tardio acordo de Paris para fazer face às imparáveis alterações climáticas. O acordo nuclear com o Irão, embora não consensual, foi uma conquista presumivelmente importante para dois países tradicionalmente inimigos e para a ameaça nuclear que impende sobre o globo. Mas o maior feito de Obama no plano externo foi o reatar de relações diplomáticas com Cuba, ao cabo de 53 anos de costas voltadas e de ódios exacerbados. Sempre considerei que a atribuição do prémio Nobel ao presidente norte-americano tinha sido prematura, incompreensível e despropositada, até esse momento, que por si só justificou o galardão. Um legado verdadeiramente histórico, mais um que ameaça esboroar-se sob a administração Trump.

Porém, Obama cometeu também vários erros e deixou muitas promessas por cumprir. Penso que, quando o próprio fizer o balanço dos seus mandatos, uma das suas maiores mágoas será a luta inter-racial nos Estados Unidos, que conheceu uma feroz escalada em vez de uma amenização, como muitos esperavam devido a ser um afro-americano a ocupar a Casa Branca. Por outro lado, se o presidente fosse outro, é bem possível que a violência dentro de portas tivesse sido pior. Outra das suas lutas que ficou por vencer foi a lei contra as armas – mais uma evolução para a qual o povo norte-americano ainda não ganhou maturidade. O encerramento da prisão de Guantánamo, local de tortura que envergonha os EUA (ou apenas alguns americanos que colocam os direitos humanos à frente da obsessão antiterrorista) foi uma das promessas mais emblemáticas que ficou por cumprir. Por outro lado, cumpriu com a retirada de tropas do Iraque, o que deixou este país mais uma vez mergulhado no caos, abrindo portas à incursão do Daesh e ao êxodo de refugiados em direção à Europa. Ao lado do Iraque, na Síria, Obama não mostrou a mesma habilidade que teve noutros assuntos externos para encontrar uma solução para a guerra nesse país. É certo que o problema é demasiado complexo, multifatorial e que a resolução está longe de pertencer a um homem só, mas ficou patente a falta de empenho norte-americano que abriu caminho à entrada de outros atores como a Rússia, Turquia e Irão, que vieram complicar ainda mais o conflito e torná-lo mais penoso para o povo sírio que com ele sofre diariamente há seis anos. Recentemente, a diplomacia do presidente Obama cometeu um erro desnecessário e evitável, ao condenar a expansão dos colonatos israelitas em Jerusalém e na Cisjordânia. Não está aqui em causa a justiça da condenação. Mas uma posição destas não deveria ter sido tomada no final do mandato, deixando órfãs as suas consequências e à mercê de mais uma revogação pela administração seguinte.

A presidência de Obama teve triunfos e teve derrotas. É assim a política. Apesar do papel passivo em matéria de política externa – que teve a ver com a sua estratégia de no boots on the ground, e que Donald Trump se prepara para levar ao extremo – foi talvez um presidente com mais aspetos positivos para fora do que para dentro do seu país. Julgo que a História definirá Barack Obama como um líder de esperança, afável e otimista, que colocou os direitos humanos e a diplomacia acima do nacionalismo e de interesses económicos e que aproximou de certa forma os Estados Unidos do resto do mundo. Obama parecia esforçar-se por agradar a todos, e talvez por isso faltou-lhe alguma firmeza necessária para moldar algumas querelas mundiais.

Penso que é justo dizer que Barack Obama marcou a transição das duas primeiras décadas deste milénio. Imprimiu à política norte-americana e à relação desta com o resto do mundo uma leveza e uma simplicidade bem diferentes da sobranceria normalmente associada aos seus antecessores. Nunca o mundo depositou tanta esperança num presidente americano. E isso permitiu respirar. Mas soube a pouco. Espremido o sumo, tenho de reconhecer que a expectativa superou a realização.

Não partilho a opinião de quem defende que foi a presidência de Obama que conduziu à eleição de Trump. Julgo que foi um conjunto de fatores mundiais os responsáveis por os tempos de incerteza e de medo que se avizinham. Neste clima hostil, seria agora necessário outro Obama. Esperemos que o que se despediu há dois dias nos tenha deixado o fôlego necessário.

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