Reestruturar a dívida em estado de (des)graça de Centeno

Défice revisto em baixa, crescimento revisto em alta. São inegáveis as vitórias do Governo PS e do ministro Mário Centeno, sobretudo porque vêm provar que as sucessivas previsões fatalistas de entidades como Fundo Monetário Internacional (FMI), Comissão Europeia (CE) e até da doméstica Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO) afinal não se confirmam. Só a dívida pública teima em aumentar. E é aqui que o Executivo tem de concentrar esforços e aproveitar o respaldo criado pelo bom desempenho ao nível dos restantes indicadores económicos para colocar na agenda a reestruturação.

Organizações nacionais e internacionais e até o próprio Governo têm vindo a melhorar as suas previsões para o défice e o crescimento. A última previsão do défice para 2016, divulgada esta semana por Mário Centeno, é de 2,1%, o valor mais baixo da história da democracia portuguesa. A CE prevê para 2017 um crescimento do PIB de 1,6% - acompanhando o ritmo da zona euro pela primeira vez desde 2009 -  e 1,5% para 2018. Este bom desempenho, já elogiado por Pierre Moscovici, vem mostrar, com recados para os bons alunos da direita e para Bruxelas, que a consolidação orçamental afinal é possível com políticas menos penalizadoras para os rendimentos do trabalho e com maior preocupação social. E confirma também a aposta dos bravos de Centeno no consumo interno, que foi, a par do turismo, uma das alavancas destes indicadores.

Claro que há vida para além do défice, mesmo em matéria de economia. Estes resultados não são sinónimos de uma economia saudável. Falta investimento. O crescimento, mesmo revisto em alta, é ainda muito tímido, ficando-se pelo quinto menor dos países da zona euro. E sobretudo a dívida pública continua a aumentar, situando-se em torno de 130% do PIB em 2016. Aqui, é agora o Governo português quem pode e deve dar uma lição a Bruxelas: por mais ginástica que se faça, com mais ou menos austeridade, cumprir o pacto orçamental não chega para equilibrar as contas públicas. António Costa e Mário Centeno devem capitalizar o bom desempenho económico de Portugal e colocar o assunto da reestruturação das dívidas, não só da portuguesa mas também de outros Estados-membros (nomeadamente a Grécia e Itália) definitivamente em cima da mesa da Comissão. Mais do que isso, tem de ser discutida e revista a política económica da UE, que se tornou um grilhão dominador da vida da União e está a destruir o projeto europeu.

Os bons indicadores económicos deveriam estar a proporcionar um momento áureo para o Governo. No entanto, a oposição tem explorado profundamente o furo das declarações de rendimento dos ex-administradores da Caixa Geral de Depósitos e acabou por conseguir abafar o impacto do desempenho económico. É compreensível que o faça, porque até agora PSD e CDS não foram capazes de capitalizar mais do que minudências. Esta estratégia é particularmente importante para Passos Coelho que, ao cabo de um ano de oposição apagada e sem rumo, enfrenta grande contestação dentro do partido e tem pela frente a dura prova das Autárquicas, que tem gerido com grande inépcia até agora em matéria de escolha de candidatos, arriscando-se a sofrer uma monumental derrota.

Mário Centeno sai, sem dúvida, fragilizado da polémica das declarações de rendimento. Fica claro que assumiu com António Domingues um compromisso que a lei não lhe permitia. E isso não se soube agora. Soube-se no último trimestre de 2016 quando o próprio ministro afirmou que os então administradores do banco público estavam isentos de apresentar a declaração de rendimentos. Centeno geriu este caso com muita falta de jeito. Já aqui foi dito no Espaço Liberdade (curiosamente também a propósito do dossiê Caixa) que Mário Centeno é bom técnico, mas carece de dom político. E é precisamente a primeira qualidade que leva o primeiro-ministro e o Presidente da República a segurá-lo. Centeno goza neste momento de maior estado de graça lá fora do que cá dentro. E tem de o aproveitar.

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