A responsabilidade de vacinar

A liberdade de escolha é indubitavelmente uma das maiores conquistas da nossa civilização. No entanto há escolhas que não são individuais, porque afetam o bem-estar dos outros. A vacinação é uma delas.

A primeira vacina surgiu oficialmente em 1796, contra a varíola. Graças a ela, a doença foi erradicada do mundo em 1980. Já neste milénio, em 2002, a poliomielite foi eliminada da Europa. A par da água potável, a vacinação foi um dos maiores avanços civilizacionais na prevenção de doenças. Estes avanços permitiram reduzir drasticamente as taxas de mortalidade, sobretudo infantil, e de complicações de doenças. Não vacinar implica retroceder séculos de sofrimento e de mortes. É isso que nos propõem os movimentos anti-vacinas.

O Programa Nacional de Vacinação (PNV) português, implementado em 1965, é um caso de sucesso a nível mundial, pela taxa de cobertura que promove e pela sua eficácia na prevenção de doenças graves. Para contextualizar o atual surto de sarampo, é necessário recordar que esta é uma doença da infância habitualmente benigna, mas que pode levar a algumas complicações graves, embora raras – um fardo que se conseguira definitivamente controlar desde 2002, ano em que se registou o último caso autóctone da doença. Estes bons resultados devem-se à gratuitidade e ampla disponibilidade das vacinas incluídas no PNV e ao esforço das equipas de saúde que promovem a vacinação desde o primeiro dia de vida da criança e que inclusive convocam os utentes que têm vacinas em atraso. E os progressos têm sido enormes: disponibilizando inicialmente 6 vacinas, cinco décadas depois o PNV oferece já 13 vacinas, que são eficazes e geralmente seguras e muito bem toleradas.

As vacinas têm efeitos secundários? Claro que sim. Como todos os medicamentos e cirurgias. E até como ir ao supermercado ou andar de automóvel. A vantagem destes produtos face aos ditos “naturais” é que são amplamente estudados durante vários anos e, de uma forma geral, quando finalmente chegam ao mercado todos esses efeitos adversos são já bem conhecidos e podem assim ser antecipados. São químicos? Com certeza. E se se disser que as vacinas são biológicas – será que isso conquista as correntes defensoras dos produtos “biológicos”? O problema destas correntes, modas, convicções, crenças, filosofias ou como lhes queiram chamar, é que têm muito mais de factos alternativos (uma expressão que tanto debate tem suscitado) do que de verdade científica. De facto, grande parte da nossa existência é inevitavelmente química: as reações que permitem que o corpo viva e funcione, as ligações entre os neurónios que dão origem ao pensamento e às emoções, a água que bebemos, os alimentos que comemos (com e sem glúten) e até o brilho mágico dos pirilampos.

Não é demais dizer que os programas de vacinação são vítimas da sua própria eficácia. Desenhados para garantir taxas de cobertura vacinal elevadas, superiores a 90%, permitem criar a tão falada imunidade de grupo: o facto de a grande maioria das pessoas estar vacinada quebra a cadeia de transmissão dos microrganismos, protegendo desta forma mesmo os que não estão vacinados. A eficácia da imunidade de grupo criou uma falsa sensação de segurança, pois quem optou por não vacinar os seus filhos adquiriu a perceção de que estes não contraíam as doenças em percentagens significativamente maiores do que os vacinados. Portanto, os não vacinados – seja por opção, convicção subjetiva ou motivos de saúde – podem agradecer a sua proteção aos vacinados. Até agora, a esmagadora maioria tem acatado voluntariamente o PNV. Talvez por isso este tenha permanecido até agora sem caráter de obrigatoriedade. O problema surge quando a proporção de não vacinados cresce acima de um determinado limiar a partir do qual deixa de estar garantida a contenção da transmissão dos microrganismos e, consequentemente, a imunidade de grupo.

Por isso, escolher não vacinar não é uma escolha individual. É uma escolha egoísta, e geralmente desinformada, que a todos afeta. E ninguém tem liberdade para colocar os outros em risco. O calor das contendas nunca é bom conselheiro. Mas o atual surto de sarampo deve servir de mote para um ulterior debate sereno e informado na nossa sociedade. Creio que está na altura de tornar a vacinação obrigatória, para proteger os cidadãos daqueles que se demitem da responsabilidade de viver em comunidade.

Etiquetas: , , ,