Jogos de guerra

Vai complexo o xadrez internacional. Os países fazem chover ameaças, as relações ora esfriam ora aquecem, as bombas caem... E enquanto os senhores da guerra se entretêm a escolher a melhor bomba do alto dos seus redutos (quase) invioláveis, cá em baixo há todo um povo que sofre e morre. Meros peões nestes jogos de guerra. Ou, como se diz em linguagem bélica, danos colaterais.

Depois de ter dado a entender que a sua política seria voltada para dentro, eis que Donald Trump descobriu o poder da guerra. Primeiro, com o bombardeamento da base governamental síria de onde alegadamente partiu o ataque químico à cidade de Khan Shaykhun. Sem qualquer certeza de quem foram os responsáveis pela atrocidade – ataque-se primeiro e investigue-se depois. Apesar de, durante a campanha, o magnata ter afirmado que não se envolveria no conflito sírio, entrou no comovente reality show ilustrado pelas chocantes imagens de pessoas mortas ou agonizantes, incluindo crianças. A façanha valeu-lhe a aura de alguém que resolve todos os problemas quando e como quiser, o que veio salvar os miseráveis índices de popularidade que o apupavam.

E agora, tomou-lhe o gosto. Qual gaiato deslumbrado pelos brinquedos de guerra que nunca sonhou ter ao seu dispor, escolheu o maior e mais poderoso de todos de entre os não atómicos, que ninguém tinha sequer ousado utilizar antes. O alvo terá sido o Daesh – e se assim foi, foi bem. Mas será que só atingiu o Daesh? As autoridades afegãs já vieram dizer que não houve civis atingidos, mas que foram mortos 90 jihadistas. O Daesh nega. É sempre difícil saber a realidade.

Entusiasmado, Trump desafia agora a Coreia do Norte. E, por arrastamento, o gigante chinês. O ataque americano à base aérea síria foi servido ao jantar ao presidente chinês acompanhado de uma bela fatia de bolo de chocolate. Os detalhes nunca são demais quando se quer impressionar com demonstrações de poder e suntuosidade – e sobretudo quando se quer intimidar e mostrar do que se é capaz. A China está avisada e agora apontam-se baterias a Pyongyang. Kim Jong-un não fica atrás e encena mais um teste nuclear. O problema de estarem dois lunáticos com o dedo no botão é que nenhum deles refletirá muito antes de o acionar. A mínima provocação será um singelo isqueiro num barril de pólvora.

Quando Trump subiu ao poder, traçaram-se todos os cenários e fizeram-se as mais variadas especulações sobre como seria a sua administração. Vê-se agora que qualquer projeção é uma perda de tempo. A sua principal característica é a imprevisibilidade. E é isso que o torna extremamente perigoso. A leviandade com que bombardeia outro país depois de afirmar que não o faria e a facilidade com que passa de inimigo a amigo da NATO atestam a falta de princípios e de estratégia, mas também denotam que com Trump não há regras.

E no meio de tudo, a Rússia. Há apenas uma semana, deixava-se em aberto a hipótese de o ataque americano à base aérea síria ter sido concertado entre os dois países. Mas o presidente norte-americano remeteu Putin para a humilhação de não ser capaz de defender nem de atacar Assad e de não ter poder bélico para contrapor aos EUA. As relações entre americanos e russos gelaram, mais uma vez na História. Ainda assim, o encontro entre Vladimir Putin e o secretário de Estado Rex Tillerson não foi cancelado. Um resquício de esperança? Ou a resignação russa?

O acordar de um passado gélido de relações entre EUA e Rússia, entre Ocidente e Leste. Vários analistas já o disseram e até o semanário Expresso desta semana não hesitou em chamar-lhe pelo seu nome: Guerra Fria. Recuamos décadas para encontrar os mesmos de sempre: EUA, Rússia e Coreia do Norte. O eterno Médio Oriente. A Síria em vez dos Balcãs. A Turquia aguardando o oportunismo. E a Europa encolhida sobre si mesma. São os senhores da guerra jogando jogos de guerra, que devoram peças-pessoas num tabuleiro-mundo.

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