Síria: onde as linhas são de todas as cores


Não é chocante. Não é triste. Não é condenável. É tudo isso e muito mais.

As palavras são vãs na tentativa de descrever o ataque químico na Síria. As imagens, essas, são poderosamente perturbadoras. Mas tudo isto fica muito aquém da barbárie de centenas de crianças, homens e mulheres mortos e feridos por respirarem uma guerra cobarde e assassina. Não há declarações nem condenações, venham de onde venham, suficientemente pungentes perante tão avassaladora tragédia humana.

A comunidade internacional choca-se com as imagens de crianças sem vida nos braços dos pais, de corpos inanimados ou agonizando na asfixia, de cadáveres amontoados numa carrinha. A mesma comunidade que chorou o corpo de uma criança que o mar deu à costa ou que se comoveu com a serenidade de um menino ensanguentado no interior de uma ambulância. Esta é a mesma comunidade internacional que não tem vontade política para resolver a tragédia na Síria por um lado, e por outro escorraça refugiados das suas portas e paga a um país corrupto para os manter longe da sua vista. É esta a comunidade que assiste há seis anos a uma guerra atroz destruindo um país e dizimando um povo. É esta a comunidade cúmplice de crimes de guerra.

As linhas vermelhas traçadas pelo ex-presidente dos EUA, Barack Obama, são já de todas as cores. Ninguém tolera o intolerável. E o improvável acontece: Donald Trump, com a sua reação assertiva de quem promete resolver o problema, pode passar de besta a bestial, incluindo na opinião pública internacional. Engane-se quem quiser. A administração Trump não tem a mínima sensibilidade diplomática para lidar com um assunto desta complexidade. A impulsividade irracional do presidente norte-americano não se fez esperar. Horas depois, já tinha arrasado com a base militar síria de onde alegadamente partira o ataque químico. Gratuitamente, sem antes investigar fosse o que fosse. Ainda não se percebeu se esta terá sido uma intervenção isolada, em tom de aviso de que há certos limites que não serão permitidos ultrapassar, ou se fará parte de uma estratégia continuada no sentido de derrubar de vez Bashar al-Assad. Este último cenário, porém, não seria possível sem boots on the ground. E isso levaria a uma grande contestação interna ao presidente americano, incluindo por parte dos seus apoiantes. Uma intervenção unilateral dos EUA, mesmo que com o apoio tácito de outras potências como a Alemanha, França e Reino Unido, poderá fazer aquecer a guerra fria que tem esfriado as relações entre Ocidente por um lado e Rússia e Oriente por outro. E no intrincado xadrez geopolítico, isso poderia arrastar outras nações para a guerra e, em última análise, resvalar para um conflito multinacional, com a Síria a funcionar como uma espécie de Império Austro-Húngaro. Por outro lado, a entrada unilateral de tropas no terreno, sem uma agenda de futuro, deixará certamente um legado de graves problemas para os sírios enfrentarem durante muitas décadas e poder-se-á transformar num local de onde os americanos terão dificuldade em sair, como aconteceu no Afeganistão e no Iraque.

É por isso que a intervenção tem de ser no âmbito da ONU. No atual estado de coisas, é indiscutível a urgência de uma ação militar na Síria. Mas teria de ser uma força militar de paz, sem qualquer interferência sobre o regime político, que libertasse o povo sírio da morte e da guerra e estabilizasse a região, criando condições para uma transição em que os sírios possam escolher o futuro do seu país. Os portugueses têm boa memória de uma força de tal natureza em Timor-Leste no início deste milénio, que só aconteceu graças aos intensos esforços diplomáticos lusos, liderados por António Guterres, que hoje está do outro lado. Por isso, é gritante o silêncio a que a ONU se tem remetido nestes dias. Claro que o bloqueio russo no Conselho de Segurança torna esta opção inviável. Contudo, esta seria uma excelente oportunidade para reconhecer que a septuagenária estrutura das Nações Unidas está hoje obsoleta e que é necessário levar a cabo a tal reforma que foi várias vezes falada a propósito da eleição do secretário-geral Guterres.

Para os amantes das teorias da conspiração, que muitas vezes são mais do que meras teorias, há ainda um outro cenário que não se pode pôr de parte: o de que o ataque dos EUA à Síria tenha sido previamente concertado e encenado secretamente com a Rússia. Tal seria vantajoso para os presidentes de ambos os países. Para Putin, que teria uma forma de deixar cair Assad sem lhe serem assacadas responsabilidades pelos seus aliados. Para Trump, que teria uma oportunidade gratuita de demonstração de força e uma justificação bastante aceitável para entrar no centro de decisões da Síria, de onde Obama ficou afastado. Para ambos, no sentido de desviar atenções internas e externas das alegadas ligações perigosas pré-eleitorais. Considerando que a China é talvez a maior ameaça atual à hegemonia americana, a coincidência temporal do ataque americano com a visita do presidente chinês aos EUA não poderia ser mais conveniente. Não seria uma surpresa se daqui por 10 ou 15 anos viéssemos a saber que tudo isto, quiçá até o ataque químico, tinha sido orquestrado pelas administrações norte-americana e russa. Mas isso são apenas teorias da conspiração.

Depois do que o mundo padeceu nas duas Guerras Mundiais, e de ter jurado não repetir, e não deixar repetir, tais erros e provações, é com profunda consternação que voltamos a assistir ao mesmo. Os ataques químicos, afinal, não são coisa do século passado. A evolução civilizacional e a moralidade dos direitos humanos também não são coisas deste século.

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