As notícias
que nos chegaram esta semana do lado de lá do Atlântico levam-me a invocar a
história fatídica das bruxas de Salem, uma mancha na conturbada história dos
EUA. Em 1692, foram condenadas e executadas duas dezenas de pessoas
acusadas de bruxaria. Quatro séculos depois, os norte-americanos assistem a uma
nova caça às bruxas, sem direito a qualquer julgamento, mesmo sumário. A
demissão de duas importantes figuras do poder judicial e de informação (intelligence) constitui um feroz ataque
a dois órgãos do poder democrático que se querem independentes e isentos. Eis a
purga à moda de Trump.

Depois da
demissão da procuradora Sally Yates por se ter recusado a fazer cumprir o
decreto presidencial que impedia a entrada em solo americano de imigrantes e
refugiados oriundos de sete países de maioria muçulmana, a administração Trump penetra
agora no FBI e demite o seu diretor, James Comey. Ninguém engoliu a esfarrapada
justificação de má condução da investigação sobre os e-mails de Hillary Clinton
usando contas não encriptadas, quando esta era secretária de Estado da
administração Obama. É dar o dito por não dito de quem em Novembro elogiava a decisão
do chefe do Bureau de reabrir o processo. Trump está a braços com as alegadas
interferências da Rússia de Vladimir Putin na campanha que o conduziu à vitória,
um gate ainda mal contado que o
magnata tentou afastar das luzes da ribalta com os 59 mísseis sobre a base
aérea síria e com a “mãe de todas as bombas”. Mas o efeito das bombas durou
pouco e Comey, responsável pela investigação, voltou à carga pedindo mais meios
para prosseguir as investigações, depois de informar o Congresso sobre o estado
das mesmas. O timing diz tudo: poucos
dias depois, Trump fazia chegar ao diretor a carta de despedimento, livrando-se
assim do incómodo chefe do FBI. Inépcia em lidar saudavelmente com o assunto ou
intenção de sanear quem se opõe ao presidente, a verdade é que afastar as
pessoas incómodas parece ser a forma de a administração Trump resolver as
adversidades. E isso é perigoso.
Não tardaram
a surgir comparações com o Watergate, que levou à demissão do presidente
Richard Nixon. Mas o que me preocupa é a purga. Se bem que muito mais suave do
que a purga de Erdogan, não há outro nome a dar ao afastamento de pessoas
avessas às pretensões de um regime. E começou com os órgãos de comunicação
social, constantemente acusados de fake
news e de desonestidade. Aqueles que são menos favoráveis à administração
foram impedidos de estarem presentes nas conferências de imprensa da Casa
Branca. Um jornalista chegou a ser preso após questionar o secretário da saúde Tom Price e a conselheira Kellyanne Conway
acerca do pano de saúde proposto por esta administração.
O
autoritarismo nunca é bom em nenhum setor. Mas quando se ataca a liberdade de
expressão dos meios que nos devem informar com rigor e isenção e a
independência das instituições judiciais, é a democracia que é posta em causa.
Já aqui disse, e repito, que é assim que começa. Assim foi com Hitler, com Mussolini,
com Salazar. Devagarinho, deixamos as bruxas serem caçadas e as liberdades
corroídas. E quando damos por isso, já só vemos à nossa volta os caçadores de
armas em punho.
Etiquetas: Donald Trump, EUA, FBI, James Comey, Sally Yates